Uma nova dinâmica familiar, que coloca o filho no lugar mais alto dessa relação assimétrica, transforma a maneira de se pensar a educação e a forma da família se relacionar com a escola. “Hoje, é em torno dos filhos que gira a vida dos adultos da família. Essa é uma mudança radical e fundamental”, afirma Rosely Sayão, psicóloga e consultora em Educação. Frente a isso, Rosely acredita que a escola deve adotar uma nova concepção de educação e entender de forma mais clara as responsabilidades do processo educacional: “Cabe à família dar conta do filho, tornar essa criança um ser humano de bem segundo os valores da família, e cabe à escola formar essa pessoa para se tornar um cidadão de bem”. Para isso, ambas as instituições devem estar atentas ao fato de que não é possível instruir sem educar e nem educar sem instruir. Acompanhe a seguir a entrevista concedida pela psicóloga à Profissão Mestredurante sua passagem por Curitiba (PR), em fevereiro de 2014, para participar de um evento para educadores promovido pela Band News FM, Sindicato das Escolas Particulares do Paraná (Sinepe/PR) e pela prefeitura local.
Profissão Mestre: Qual o perfil da família na atualidade e que características essa nova família traz para a escola?
Rosely Sayão: Não é a nova família, são as novas famílias, não podemos mais falar em família no singular. Isso a gente conseguiu fazer até o final dos anos [19]50, mas daí para frente não tem mais jeito. E, portanto, não há um perfil, há diversos perfis. Mas, uma questão acompanha as novas famílias – não vou falar da configuração, do desenho, da composição –, vou falar da dinâmica familiar. O tipo de relacionamento entre os integrantes da família mudou radicalmente. Antes, a gente tinha um desenho que era bem clássico, que hoje diminuiu muito, mas ainda existe: a família com o desenho “pai, mãe e filhos”, que ficavam juntos, o casal “até que a morte os separasse” e os filhos até que tivessem vida própria. Hoje, o que temos são pais que não necessariamente estão juntos com os filhos. Eles podem estar distantes dos filhos pelos motivos mais diversos possíveis, desde um rompimento de casamento até excesso de trabalho. Essa relação [familiar] é assimétrica, e sem assimetria a gente não tem condição de praticar a educação. Mas, essa assimetria mudou, ou seja, hoje, quem tem o lugar mais alto nessa relação assimétrica são os filhos. É em torno dos filhos que gira a vida dos adultos da família. Essa é uma mudança radical e fundamental, que muda a maneira da gente pensar a escola, a relação com a escola, com a educação e tudo mais.
Profissão Mestre: O que muda na relação da família com a escola?
Rosely: Os pais sempre vão pensar nos seus filhos. Na escola, não há filho de ninguém. Na escola, há alunos. E quando as crianças fazem a passagem do papel de filho para o papel de aluno, elas mudam, nós mudamos. Qualquer um de nós, quando passamos a ocupar o lugar de aluno, muda. Às vezes, faço palestra para professores, e há aqueles que ficam no fundão, fazem barulho, passam bilhetinho, usam o celular. É um papel [de aluno] que vem carregado com um “pacote”. E quando os pais vão à escola falar dos filhos, eles falam de alguém a quem eles querem atender em cem por cento. E eles se esquecem, e a escola também se esquece, que eles não estão falando de seus filhos na escola. Aliás, a escola falha muito nesse sentido, porque ela deveria falar “nosso aluno” e ela fala com os pais o “seu filho” – não é o seu filho, o filho é uma coisa, o aluno é outra.
Profissão Mestre: É necessário que o professor tenha uma preparação diferente para adquirir uma nova concepção de educação?
Rosely: A escola deveria ter uma nova concepção [de educação]. O professor é uma figura, uma pessoa que exerce uma função em uma instituição. Mas quem precisa capitanear essa nova concepção é a instituição, porque daí as pessoas que trabalham na instituição vão junto. Se hoje temos muitos professores chamados de autoritários, retrógrados, é porque a instituição escolar falhou nesse aspecto.
Profissão Mestre: O que é responsabilidade da família e o que é responsabilidade da escola em relação à educação? Deve haver um trabalho conjunto?
Rosely: Há uma discussão em pauta, na sociedade. O [Fernando] Savater, filósofo espanhol, que também é um pensador da área da Educação, escreveu um livro maravilhoso sobre essa questão chamado O valor de educar (Ed. Dom Quixote), e ele já dizia sobre essa discussão, hoje em pauta no Brasil, de que a diferença entre educar e instruir é inócua, não existe, porque não é possível instruir sem educar e nem educar sem instruir. Essa é uma diferença que não existe. Mas, como já disse, filho é uma categoria e aluno é outra. Cabe à família dar conta do filho, tornar essa criança um ser humano de bem segundo os valores da família, e cabe à escola formar essa pessoa para se tornar um cidadão de bem. O filho diz respeito a um ambiente privado, a uma pessoa; e o aluno diz respeito a um ambiente público, a um cidadão.
Profissão Mestre: E como a escola pode se aproximar da família?
Rosely: É difícil. Toda nossa bibliografia, não só brasileira, mas [internacional] sobre educação, trata esse como um tema muito delicado. A pergunta que existe é: “É possível essa relação?”. Não conseguimos afirmar: “É possível”, e também não achamos bom que não haja proximidade [entre família e escola]. A maneira como temos agido não é boa nem para as escolas nem para a família, porque o que temos hoje é uma relação de poder entre uma instituição – bem ou mal, a escola é uma instituição, e tem normas e regras que todo mundo conhece – e as famílias, que são uma multidão desgovernada, porque cada família é um pequeno núcleo. Então teríamos que inventar uma maneira diferente de fazer essa aproximação, sem desrespeitar a família, a cultura familiar. Eu ouço muito as escolas falarem: “As famílias não educam”. Isso é uma falta de respeito muito grande, porque [a escola] não confia nos pais dos alunos. [A família] educa, sim. Não do jeito que as escolas e os professores gostariam, mas educa.
Profissão Mestre: Quando a senhora fala em uma maneira diferente de fazer essa aproximação entre escola e família, por onde começar?
Rosely: Participei de algumas experiências, e todas elas dirigidas por movimento dos pais e não da própria escola. O primeiro movimento dos pais, nas escolas que eu acompanhei, foi criar um grupo de pais – não se trata daquela associação de pais e mestres, porque é um grupo só de pais. A única motivação é que os filhos de todos eles frequentam aquela escola. Primeiro, eles tentam se organizar para evitar que cada um vá até a escola pedir algo relacionado a uma questão pessoal: “Meu filho precisa disso, precisa daquilo”. Eles começam a se organizar e formular pautas importantes para todo alunado e daí eles vão batalhar junto à escola pelas questões que consideram importantes para todos.
Profissão Mestre: A senhora critica a agenda lotada de atividades das crianças. Quais as consequências dessa rotina tão comum atualmente?
Rosely: A criança está perdendo o presente dela. Com essa mania que nós, adultos, temos de pensar no futuro dela, a gente rouba o seu presente. E toda vez que a gente rouba um pedaço de vida de uma pessoa, esse pedaço de vida voltará, mas não sabemos como. Temos algumas pistas: atualmente, os alunos universitários são absolutamente infantilizados. Os professores universitários não sabem o que fazer com aqueles adolescentes, que não têm autonomia, que querem ficar brincando. Isso já é um reflexo da geração na qual os pais queriam que seus filhos, lá pelos seus 4, 5 anos, fizessem informática, inglês, aprendessem a ler e escrever... É importante que a criança tenha tempo para ser criança. E ser criança é, basicamente, brincar. Essa é a linguagem da infância, e é brincando que a criança se comunica consigo, com as questões internas dela, e com o ambiente externo também, e entende o mundo.
Profissão Mestre: O que as novas tecnologias representam para o processo ensino-aprendizagem? O que muda na forma de ensinar com a presença da internet e das redes sociais?
Rosely: Por enquanto, nada. O que é uma pena, porque as [novas] tecnologias e esses aparelhos todos poderiam ser um estímulo para a mudança. Por exemplo, a gente proíbe o celular na escola porque a gente não sabe o que fazer com ele. Deveríamos integrar o celular à escola. E dentro do ambiente escolar, não vale contato de amiga, de mãe. Até porque, se a gente integrá-lo ao ambiente intelectual escolar, as coisas vão ficando mais tranquilas. Tenho visto muita escola com tablet – não há diferença entre o tablet e o caderno. Agora, as apostilas estão no tablet, passaram do papel para a tela. Não vejo nenhuma mudança. Podemos ter, e aí o céu é o limite. Cada escola pode inventar uma mudança. Temos vários exemplos já, mas preferimos, por enquanto, ficar na “idade das pedras”.
Profissão Mestre: Por que é tão difícil implementar mudanças no atual sistema escolar, mesmo com as novas tecnologias fazendo parte da vida dos alunos e professores?
Rosely: Porque o ser humano é muito resistente à mudança. Veja a questão das famílias – vamos terminar onde começamos [a entrevista] – as novas famílias: se você pega o corpo dos trabalhadores de uma escola, dificilmente você vai encontrar nesse corpo de trabalhadores – e eu incluo aí todo tipo de trabalhador da escola, não só professor –, quem tem aquela família formada por pai, mãe e filhos, todos juntos. Mas, na hora de falar da família dos alunos, a gente fala que ela é desestruturada, que os pais trabalham demais, mas o professor está na escola e tem filho em casa, sem pai e sem mãe também. A gente olha para fora e enxerga. Olhar para dentro é mais difícil. A escola acha o máximo dar tablet para os seus alunos, com a apostila lá dentro, e acha isso uma grande inovação. E ela olha para as escolas que não têm isso e pensa: “Coitadas, né?”. Mas, você não é capaz de olhar para si mesmo e falar: “Que besteira que eu fiz, deixei o mesmo conteúdo da apostila [no tablet]!”.