Psicóloga, psicopedagoga e terapeuta familiar, Simone Maria de Azevedo integrou, durante 12 anos, equipe especializada de apoio à aprendizagem na Secretaria de Educação do Distrito Federal. Também trabalhou como professora em escolas públicas e particulares, por 16 anos, com atuação na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental.
Em entrevista ao Jornal do Professor, ela diz que é preciso diferenciar problemas e dificuldades de aprendizagem e afirma que os professores são muito importantes no processo de intervenção, independentemente do problema. “Seu olhar, sua postura, sua afetividade fazem toda a diferença”, ressalta Simone.
Jornal do Professor – O que são problemas de aprendizagem?
Simone Maria de Azevedo – São sinais indicativos de que algo não vai bem no aprender ou no ensinar. São comportamentos, atitudes, modalidades de lidar com os objetos de conhecimento e de se posicionar nas situações de aprendizagem que não favorecem a alegria de aprender, a autoria de pensamento, o sucesso acadêmico. Os problemas de aprendizagem podem ser classificados em sintoma, inibição cognitiva e reativos. Nos dois primeiros casos, as origens e causas encontram-se ligadas à estrutura individual e familiar do indivíduo que “fracassa” em aprender. No último, relacionam-se ao contexto socioeducativo. Ou seja, a questões didáticas, metodológicas, avaliativas, relacionais. É importante salientar que nos problemas de aprendizagem reativos o fracasso escolar pode demandar redimensionamento que englobe desde órgãos superiores responsáveis pela educação no país até as salas de aula. Já nos problemas em que os fatores desencadeantes são externos ao contexto escolar, geralmente há necessidade de uma avaliação especializada para buscar intervenções adequadas.
– Quais as principais manifestações dos problemas de aprendizagem?
– Comprometimento na interpretação de texto, disgrafia (deficiência na habilidade de escrever, em termos de caligrafia e também de coerência), dislexia, discalculia (dificuldade no aprendizado dos números), dispersão em sala de aula e nos momentos de realizar atividades e avaliações escolares. Modalidades de aprendizagem que não favorecem a assimilação e a acomodação dos conhecimentos de modo satisfatório, entre outros sinais, podem ser manifestações de problemas de aprendizagem. Entretanto, é preciso diferenciar problemas de aprendizagem de dificuldades de aprendizagem. Qualquer estudante pode atravessar, em algum momento da vida escolar, alguma dificuldade no aprender. Pode demorar um pouquinho mais para assimilar um conteúdo, para dar sentido ao que lhe é ensinado, por uma ou outra razão, sem, contudo, configurar um sintoma ou fracasso do professor.
Um problema de aprendizagem pode ser considerado como tal quando descartadas causas socioeducativas. Ou seja, quando os sinais persistem, apesar das intervenções educacionais. Nessas situações, muitas vezes, como foi assinalado anteriormente, há necessidade de investigação e leitura especializada. Ressalto, entretanto, a importância de cautela por parte dos educadores ao “diagnosticar”. É preciso cuidado com a tendência de atribuir a causas organicistas os problemas e dificuldades de aprendizagem apresentados pelos alunos. Considero muito válido o trabalho coletivo da escola. O estudo de situações, a ajuda e o apoio de outros profissionais – orientadores educacionais, coordenadores pedagógicos, psicólogos, psicopedagogos – são sempre muito positivos. Surgem novos olhares, tanto em relação à leitura dos problemas quanto às possibilidades interventivas.
– É possível que alunos que enfrentam problemas familiares apresentem dificuldades para aprender?
– Não necessariamente. Muitos de nós conhecemos crianças e adolescentes filhos de lares muito complicados e problemáticos que aprendem bem e são alunos de destaque. Conflitos familiares vão gerar problemas de aprendizagem quando a inteligência – aqui entendida como a capacidade de elaborar situações por meio da lógica, do pensamento, da cognição –, encontra-se aprisionada pela dimensão afetiva. Nas obras A inteligência aprisionada e Os idiomas do aprendente, de Alicia Fernández, a autora explicita muito bem essas situações. Entretanto, normalmente, em famílias muito conflituosas, crianças e adolescentes podem sofrer de depressão, apresentar transtornos variados, mostrar-se agressivos, hiperativos, ansiosos, desatentos, agitados e, assim, apresentar conflitos na escola. Isso, porém, não significa que tenham algum problema ou dificuldade de aprendizagem, mesmo que os sintomas apresentados perturbem seu desempenho e rendimento escolar.
– Como saber se um aluno apresenta, por exemplo, déficit de atenção ou apenas passa por um momento difícil? Parece que tem crescido a prescrição de medicamentos a estudantes que não conseguem ficar quietos na sala de aula. Isso está ocorrendo?
– Como mencionei, é preciso ter cuidado com concepções calcadas estritamente em determinismos genéticos ou ambientais. Um problema orgânico por si só, assim como o contexto ambiental por si mesmo, não responde isoladamente às causas dos problemas de aprendizagem. Um aluno ou aluna com comprometimentos orgânicos, em alguns casos, pode apresentar alguma limitação. No entanto, ainda assim, pode construir belas aprendizagens se lhe forem dadas condições afetivas, técnicas, didáticas e metodológicas que considerem suas necessidades e potencialidades. Minha experiência tem mostrado que crianças e adolescentes diagnosticados com déficit de atenção são pessoas que têm sofrido sérios conflitos subjetivos e familiares. Conflitos sintomatizados em desatenção. Entendendo os sintomas (no caso, a desatenção) como um modo de dizer algo, falar de algo, uma linguagem que o sujeito usa para comunicar alguma coisa, um pedido de socorro, é fundamental que os profissionais da educação e da saúde se perguntem sobre eles. Quais as possíveis causas que levariam uma criança a se dispersar constantemente? Em que momentos e situações esse sintoma ocorre com maior frequência e intensidade? O que é atenção? O que é atender? Ser atendido? Quais as concepções teóricas ao levantar hipóteses acerca do diagnóstico de TDAH [transtorno do déficit de atenção com hiperatividade]?
Sobre a prescrição de medicamentos, é alarmante o crescimento do número de crianças, adolescentes e adultos que os usam. E uma das grandes preocupações que tenho é com o fato de, na maioria das vezes, não serem buscadas as verdadeiras causas que geraram e mantêm os sintomas. De muitas vezes não ser incluída nos diagnósticos e nas intervenções a visão analítica e sistêmica das situações. Enfim, de não se abrir espaços de pensamento acerca dos motivos pelos quais uma criança, por exemplo, está desatenta, dispersa. “No mundo da lua”, como costumam falar muitos professores e pais.
– As escolas estão preparadas para ajudar os estudantes que apresentam dificuldades de aprendizagem e, assim, evitar o fracasso escolar? O que pode ser feito?
– A atualidade, com toda a sua diversidade, demanda reflexões acerca de concepções e práticas. Redimensionamento na atuação profissional. Porém, o investimento individual e governamental ainda é pequeno e ineficaz. Observa-se, contudo, em algumas localidades do nosso país e em certas escolas, em particular, um movimento mais organizado e prioritário na formação dos professores. No Distrito Federal, por exemplo, cursos variados estão disponíveis na rede pública de ensino. São também programados momentos semanais de formação continuada nas escolas em que os professores atuam. Eles lecionam em um turno e no outro realizam diferentes atividades. Entre elas, as mencionadas. Exemplo que deveria ser seguido por todas as unidades da Federação. Entretanto, na formação continuada deveriam ser incluídos espaços objetivos e subjetivos que permitam trabalhar questões psicopedagógicas essenciais para a qualificação do fazer pedagógico. O caráter subjetivo da aprendizagem, muitas vezes esquecido, é tão importante quanto a didática, os métodos, as técnicas.
– Os professores da educação básica têm condições de diagnosticar problemas de aprendizagem?
– Professores atentos, sensíveis, amorosos, estudiosos, éticos, que amam ensinar e aprender têm condições de perceber comportamentos e sinais indicativos de problemas de aprendizagem. Muitas vezes, é na escola que a criança apresenta algum sintoma alusivo a conflitos de naturezas diversas. Em se tratando de problemas de aprendizagem reativos, ou seja, em que as causas são de ordem socioeducativa – falhas ou inadequações no modo de ensinar e intervir –, docentes e demais profissionais da educação e da saúde que atuam nas escolas deveriam ser formados para identificá-los e resolvê-los. No entanto, quando há hipóteses de causas individuais e familiares, o diagnóstico carece de olhares clínicos. Contudo, os professores são importantíssimos no processo interventivo, independentemente do problema. Seu olhar, sua postura, sua afetividade fazem toda a diferença.
Alicia Fernández, psicopedagoga argentina, referencial teórico que sustenta minha prática, relata em sua obra A atenção aprisionada, publicada em 2012, cena observada em um hospital público de Buenos Aires:
“O silêncio da sala de espera é interrompido pela alegria contagiante de médicos e enfermeiras despedindo-se de um homem de seus 80 anos, que está recebendo alta hospitalar após 40 dias de UTI, entre a vida e a morte. A comovedora situação incita-me a aproximar-me do ancião quando ia caminhando – já sozinho – pelo corredor.
– Quero fazer-lhe uma pergunta – digo.
– Você tem tempo de escutar-me? Responde, oferecendo-me, de entrada, a primeira reflexão, que me faz pensar quantas vezes perguntamos, sem oferecer tempo para escutar. E, ao olhá-lo, surge a pergunta:
– De onde o senhor tirou forças para se curar?
– Essa é uma longa história. Se quiser, eu conto. Tenho 83 anos, tive um acidente na rua, e me trouxeram inconsciente. Escutava tudo o que os médicos falavam, mas eu não podia falar. Dava-me conta que eles diziam que eu ia morrer. Eu pensava que queria dizer-lhes: quero viver. E não me saíam as palavras. Então, comecei a pensar em alguém que tivesse acreditado em mim e assim, depois de tanto tempo, recordei-me da professora Teresa, minha terceira professora. Quer que siga contando?
– Sim, me interessa. O que recordou?
– O modo como ela me olhava, me escutava... Desde que comecei a escola, os professores diziam à minha mãe que eu não aprenderia a ler e escrever. Por um tempo, deixei a escola – ‘Não vai aprender tudo’. No ano em que retornei, porque tinha muita vontade de aprender, tive outra professora. Repetiu-se a história, voltaram a me tirar da escola. No ano seguinte, insisti pela terceira vez e, então, conheci a professora Teresa. Lembrei-me dela 70 anos mais tarde, estando em terapia intensiva, quando eu queria tirar forças para me curar...
– E o que foi que o senhor recordou sobre ela? – perguntei.
– Lembrei-me que ela me olhava como que dizendo: ‘VOCÊ PODE’...”
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