"Tchá por Deus! Hoje é o aniversário dos
300 anos dessa cidade quente pra
besteira. Vai ter aúfa de dgente lá na
Casa de Nhô Dito. Vai ter petchada,
rasqueado e o povo só vai prantchar
de lá amanhã bem cedo, depois do
quebra-torto".
Se você é cuiabano de "pé rachado"
ou "pau-rodado", certamente já ouviu
algumas dessas expressões que fazem parte do vocabulário de quem vive na
Baixada Cuiabana.
Apesar de ainda hoje não se saber ao certo a origem do falar cuiabano, estudiosos
e escritores acreditam que trata-se de uma herança trazida dos portugueses,
espanhóis e principalmente dos indígenas, que foram os primeiros ribeirinhos da
cuiabania no século XIX.
Segundo a escritora e doutora em Educação, Maria Cristina Campos, que lançou em
2014 o livro “O Falar Cuiabano”, toda essa característica cultural diferenciada do
povo cuiabano corre risco de desaparecer com o passar dos anos. Isso ocorreria,
segundo ela, porque as novas gerações sentem vergonha desse modo de falar.
“A assimilação do falar cuiabano está dentro de um contexto globalizado. Hoje os
próprios jovens, filhos dos cuiabanos ‘raiz’, sejam eles já migrantes que se
estabeleceram aqui ou os tradicionais, têm muita vergonha desse falar. Eu já tive
experiências de ir às escolas dar palestras e falar que não tem porquê sentirem
vergonha, mas eles se recusam a falar desse jeito. Apesar disso, ainda resiste em
comunidades tradicionais, e até mesmo em alguns bairros mais longes. Se você sair
de Cuiabá e andar uns 30 km para o interior adentro, você ainda vê isso com muita
força”, disse.
Não tem que ter preconceito
nenhum com o
falar,
a
pessoa tem o
direito de falar do jeito que ela quiser
Importância do conhecimento e bullying
Atualmente, pode ser considerado raro conhecer algum adolescente ou jovem que
fale o bom “cuiabanês”, tão comum entre os pais e avós. Nas escolas, inclusive,
os jovens chegam a sofrer bullying - e esse seria o principal motivo desse falar deixar
de existir.
“Quando alguém chega falando nas escolas assim, o que acontece? Sofre bullyng,
e é debochado, aí ele fica com vergonha e começa a mudar o jeito dele falar, até
para não ser incomodado. Isso é uma situação recorrente”, contou a escritora.
A autora relembra que seu livro foi exatamente escrito com o propósito de ser
distribuído nas escolas do Estado, mas isso nunca veio a acontecer.
“Na época, foi uma encomenda da Secretaria de Cultura do Estado, que queria
a produção de um material para as escolas, para que fosse trabalhada com os alunos
essa questão da cultura. A ideia, a princípio, era fazer um glossário dos termos cuiabanos,
mas falei que isso já existe. Então, disse que para as salas de aula seria interessante
saber a constituição cultural do falar, mostrar isso, porque hoje muitos professores
não sabem”, disse.
Chinelo de dedo, a gente chama de ‘bambolê’. Dizíamos: 'Vou calçar meu bambolê'. Nunca vi isso em lugar nenhum outro lugar, só aqui
De acordo com Maria Cristina, o trabalho de
produção durou quatro meses, mas acabou o
Governo e o livro acabou no depósito da
secretaria, não cumprindo a sua função de
ir para as escolas – o que ela considera que
seria ainda hoje de extrema importância,
justamente para as expressões culturais do
cuiabano serem conhecidas e não esquecidas.
“Mostrar a fala, desde a composição da cuiabania,
com a chegada dos portugueses, dos espanhóis,
porque todo o Brasil é composto de uma miscelânea
de povos. E aqui você vê o português, a força indígena que é um elemento que
historicamente foi bastante negado. Tem elementos indígenas em determinados
traços, por exemplo, nessa indistinção de gênero, quando eu falo ‘vou lá no Maria’
e não na ou ‘à'. E quando você falo o ‘no’, é uma mistura de gêneros que ficou
comprovado que veio de línguas indígenas”, afirmou.
Para a escritora, tudo é questão de saber usar as expressões.
“Porque quando a gente estuda o português, a gente estuda as variantes lingüísticas,
e quando estuda isso, você sabe que na oralidade não existe o certo ou o errado, existe
o adequado e o não adequado. Então, eu posso falar com determinado jeito com a
minha comunidade. Agora se eu vou, por exemplo, dar uma palestra ou outra
situação mais formal, aí mudo o registro para ficar adequada para aquela situação
específica. Não é você deixar de falar, mas é você aprender a dominar outras
variantes para você se colocar na situação ideal. Não tem que ter preconceito
nenhum com o falar, a pessoa tem o direito de falar do jeito que ela quiser”,
explicou.
A educadora defende que, além de estar dentro das escolas para que as crianças
conheçam suas raízes culturais, a integração de políticas públicas na cidade
também ajudaria bastante.
Ela lembra de quando ainda era criança e aprendeu a usar as expressões cuiabanas.
“Quando eu era criança morava no Coxipó da Ponte. Então, todo dia à tarde tinha
lanche, e às vezes tínhamos chá mate com pão ou com bolo de queijo, bolo de arroz. Então,
o ‘tchá co bolo’ ficou conhecido por isso”, disse.
“Chinelo de dedo, a gente chama de ‘bambolê’. Dizíamos: 'Vou calçar meu bambolê'. Nunca vi
isso em lugar nenhum outro lugar, só aqui. Quando a gente jogava ‘bolita’, eu brincava com os
meninos, e se alguém tinha uma bolita nova e bonita ou cobiçada, chamava ela de
‘laurita’. E se era velha ou quebrada, era ‘cascabuia'" relembrou, aos risos.
Eu acho que nós estamos perdendo muito ao longo dos anos,
em nome do tal des-envolvimento, que é um não envolvimento
A falta desse vocabulário hoje em dia e do incentivo dele na sociedade assusta e
entristece a educadora, que diz que Cuiabá comemora 300 anos de
“des-envolvimento”.
“Eu acho que nós estamos perdendo muito ao longo dos anos, em nome do tal
des-envolvimento, que é um não envolvimento. Porque toda essa economia global,
que envolve a grande pecuária e agricultura, não traz nada pra nós de positivo,
não fica um centavo. Não vejo nas comunidades. As suas áreas naturais estão
sendo destruídas, eu não estou vendo ganho nenhum para a população”, afirmou.
“Cuiabá, por exemplo, cresceu demais, tem todas as características negativas dos
grandes centros, mas ela tem poucas características positivas,
principalmente na área cultural”, criticou.