Escrito por Anna Veronica Mautner
Durante muitos e muitos milênios, o homem, graças a seu polegar na magnífica posição que ocupa na mão, pôs-se a fazer. Mas o humano não é apenas aquele que faz; ele tornou-se complexo, muito complexo, ao também se comunicar. O humano diz ao outro, por meio de gestos, mímicas, palavras, o que deseja para formar uma base comum. Começou com um nome para chegar à palavra que designa o fazer, o falar, o lembrar. O nome e a palavra nos tiram do isolamento. Uma árvore, o vento e o frio podem ser comuns a todos. E se ganham um nome, o grupo está formado.
Ainda antes de escrever, logo depois dos primeiros gestos, veio o som e, com ele, a palavra. Muitos seres que se identificam entre si chegaram até o som. Mas a palavra é só do homem. Nós ouvimos sons e reconhecemos esses grupos sonoros, palavras que o semelhante entende mesmo na ausência do denominado objeto. É o caso do grito que reconhecemos ser de um semelhante mesmo na ausência dele. Tentar fazer a história da humanidade e a gênese da oralidade humana em um parágrafo é muita pretensão. Mas eu só pretendo dizer que somos os autores de nossa sociedade. Não há sociedade sem comunicação.
Algumas palavras são onomatopaicas, isto é, imitam o fato referido. Por exemplo: mãe. Em quase todas as línguas ocidentais, a letra “m” tem a ver com a palavra que designa mãe. Existe uma língua ocidental que eliminou a letra “m” da designação de mãe, que em húngaro é anja. Mas isso não esgotou o sentido de mãe, porque mama, na gíria familiar, é a palavra usada com os nenês e avó é nagy mama, que significa grande mãe. Provavelmente isso tem a ver com a gênese da fala do nenê. A letra “m” está entre as primeiras consoantes que dizemos, é um som fácil que requer muito pouco da língua: vem da garganta até o lábio, sem precisar de dente. Eis aí o primeiro som: mama, mère, mother, mutter, ima. O som das letras “d” ou “s” é muito mais complicado de emitir: é preciso movimentar a boca inteira, inclusive os dentes.
Por esses dias, tive contato com alguns bebês, e a presença do “m” saltou aos meus ouvidos. Aí eu fui falar a palavra pai e percebi que para dizê-la precisa-se de lábio, enquanto mãe, não. As vogais nascem nas cordas vocais e no ar que passa por elas, dispensando a morfologia da boca, diferentemente das consoantes. Se nós pensarmos que a junção da consoante com a vogal foi um dos saltos fundamentais da passagem para a condição humana, vamos começar a dar importância ao estudo da língua e da intenção. O grito de dor ou a exclamação de alegria são um salto do sentimento ou do sentir para o som. A consoante demanda intenção, escolha. O sim e o não, que são resultado de pensamentos ou escolhas, têm ou não na consoante a sua base e, no gesto, a sua confirmação.
A linguagem tem a ver com o quanto de pensamento, sentimento e impulso está envolvido na ideia que a palavra expressa. Quente e frio têm tanto de universalidade quanto mamãe. E por que o primeiro som é “m” e a primeira pessoa é mãe? Será que é assim em todo lugar? Será que as vogais existem em toda parte? Existem. A predominância da letra “m” como primeiro som, não tenho informações concretas, mas acho que é natural, pela facilidade de ser enunciada. A oralidade e o emitir o som são amálgamas da formação de grupo e da pertinência a esses grupos. Os grupos não são todos iguais pelo planeta afora, mas emitir o som que se ouve logo ao nascer é universal. A ordem de aquisição dos sons é a história do grupo e dos recém-nascidos. Hoje precisamos rever muita coisa por causa da mobilidade dos grupos pelo mundo, seja de barco, de avião, por telefone ou outros meios de comunicação. Somos um planeta cheio de grupos e dá a impressão de que quanto mais grupos, mais dessemelhanças. Derreter as diferenças orais não é a tendência da humanidade, pelo menos até hoje.
Artigo publicado na edição de novembro de 2014.
http://www.profissaomestre.com.br/index.php/colunistas-pm/anna-veronica/1136-dominio-da-oralidade