Escrito por Fábio Torres
Paulo Freire (1921-1997) ficou conhecido no mundo todo por defender um modelo de educação mais crítico e alinhado com o pensamento e a cultura do povo. No entanto, suas ideias, ainda que muito estudadas no ensino superior, acabam, na prática, sufocadas pela hegemonia dos testes de larga escala, como a Prova Brasil e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). É o que considera o educador argentino Carlos Alberto Torres, amigo do pedagogo brasileiro, diretor e fundador dos institutos Paulo Freire do Brasil (em 1991), da Argentina (em 2003) e da Universidade da Califórnia (Ucla), em Los Angeles (em 2002).
Professor de Ciências Sociais e Educação Comparada na Escola de Educação da Ucla, Torres critica a atitude de muitos gestores educacionais de focar a prática educacional nos resultados de exames nacionais e internacionais – algo que ele chama de “uma das tragédias da comunidade educativa no mundo inteiro”. Para o argentino, isso faz com que os alunos não desenvolvam seus lados crítico, criativo e amoroso, o que consequentemente traz prejuízos para o país. Torres esteve no Brasil no começo do segundo semestre para divulgar o seu novo livro Diálogo e práxis educativa: uma leitura crítica de Paulo Freire (Edições Loyola), no qual ele e outras pessoas próximas a Freire, como Luiza Erundina, Moacir Gadotti e Mario Sergio Cortella, analisam com profundidade o pensamento do renomado educador brasileiro. O livro é uma reedição da série Paulo Freire, lançada pela primeira vez no Brasil em 1979, quando foi dividida em três títulos. Na oportunidade do lançamento da reedição, Torres conversou com aProfissão Mestre sobre o tema de seu livro mais recente e sobre como a educação no Brasil e no mundo ainda pode aprender – e muito – com os ensinamentos de Paulo Freire.
Profissão Mestre: Como o pensamento de Paulo Freire influencia a educação na atualidade?
Carlos Alberto Torres: O pensamento de Paulo Freire tem passado por várias e distintas etapas. Quando eu escrevi esses livros [da série Paulo Freire], ele não era tão conhecido como agora. Com o passar do tempo, a visibilidade da Pedagogia do oprimido [Ed. Paz e Terra], que foi um dos livros mais importantes da educação no século XX, lançou Paulo Freire e o transformou em um guru da educação internacional. Mas, com o decorrer do tempo, seu trabalho chegou a âmbitos mais distintos de pensamento e prática. Agora, Freire é um autor lido, por meio de traduções, em diversas partes do mundo e tem impacto no campo da formação de professores. São nesses cursos que lemos mais o trabalho de Paulo Freire. Entretanto, suas posições teóricas não têm impactado profundamente a tomada de decisões na educação. Ele foi secretário municipal de Educação de Luiza Erundina, em São Paulo (SP). Nessa experiência, apoiado por Moacir Gadotti, que era chefe de gabinete, e por Mario Sergio Cortella, seu sucessor após deixar a secretaria, Freire articulou um conjunto de posições que mostram grandes possibilidades de um pensamento crítico da educação e a chance de vincular o ensino com movimentos sociais e de transformar os modelos educativos.
Profissão Mestre: O senhor considera esse pensamento contemporâneo?
Torres: A contemporaneidade do pensamento de Paulo Freire, que é vinculado a uma postura ética na educação e a posições pós-colonialistas, tem relação com o que eu e outros intelectuais chamamos de teoria crítica da educação. Esse modelo está muito vinculado ao pensamento de [Jürgen] Habermas, de [Max] Horkheimer, de [Herbert] Marcuse, de [Theodor] Adorno, o qual ficou conhecido nas décadas de 1920 e 1930 como Escola de Frankfurt. Essa é, portanto, a síntese para mim. Freire é lido, assim como tem sido há mais de trinta anos, e tem impacto na conversa sobre o pensamento crítico. Hoje estamos com Freire ou sem Freire, mas nunca contra ele.
Profissão Mestre: Falando em pensamento crítico, o senhor acredita que a educação tem seu lado crítico desenvolvido? Temos hoje uma educação crítica?
Torres: Não, com certeza não, e lhe digo o motivo. Com o desenvolvimento do liberalismo, a educação tem se democratizado. Agora, o que existe é um movimento que recebe vários nomes ao redor do mundo, que são os testes de aprendizagem que avaliam a qualidade da educação e dos professores. Isso cria um modelo tecnocrático que impede a criatividade. É um modelo em que professores de muitas partes do mundo são forçados a ensinar um conteúdo prescrito, o que se chama de core curriculum, e a ensinar os estudantes não para [que estes possam] aprender, mas sim para fazer esses testes e avançar academicamente. Isso, para mim, é uma das tragédias da comunidade educativa no mundo inteiro e é uma das razões para a vinculação do mundo do neoliberalismo com o impacto da tecnocratização da educação, o que explica o porquê de o pensamento progressista e crítico ter tanto impacto. Mas há mais. O segundo elemento que está em jogo é a presença da Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que há 15 anos criou um conjunto de testes que se chama Pisa. São testes que marcam a qualidade da educação em cada país e, com base no resultado deles, muitos administradores educacionais ao redor do mundo tomam decisões para transformar o sistema de educação pública e melhorar os resultados de meninos e meninas nesses testes. Isso, para mim, gera complicações enormes, o que já é reconhecido pelos ministros de Educação dos países latino-americanos, os quais fazem duas objeções: a primeira é a de que não podemos ter testes que sejam a única medida da qualidade da educação; a segunda é a de que não podemos aceitar que um modelo como o Pisa imponha os critérios para o tipo de transformação educativa que deve acontecer na América Latina. Portanto, muitos ministros da Educação da América Latina têm começado a reagir contra essa hegemonia dos testes e da [avaliação da] OCDE.
Profissão Mestre: E o que mais compromete a educação crítica?
Torres: Existe outro elemento em juízo que dificulta a apresentação e a implementação sistemática dos pensamentos críticos na educação. Refiro-me à presença de organismos como o Banco Mundial. Escrevi um artigo que se denomina “A educação bancária do Banco Mundial”, o qual mostra que há um conjunto muito grande de instituições multilaterais ou bilaterais que têm adotado os modelos neoliberais. Essas instituições impactam os países, especialmente aqueles em desenvolvimento, e fazem com que estes adotem um conjunto enorme de medidas propostas por elas. A outra parte dessa tragédia político-pedagógica do mundo contemporâneo é que muitas associações profissionais ligadas ao magistério, em algumas ocasiões confrontando os sindicatos de professores, têm adotado de forma lenta, mas decididamente, um modelo neoliberal para impulsionar a privatização da educação e, como associações profissionais, constituem outro ponto de elaboração dessas posturas, que são tão tecnocráticas como políticas, ainda que elas não se reconheçam como políticas. Elas dizem que é somente uma técnica, mas, na realidade, quando você impulsiona modelos tecnocráticos, trata-se de um modelo político. Então a resposta [em relação a se temos uma educação crítica] é não, não há uma forte presença dos pensamentos progressistas e críticos da educação, mas eles existem, sobrevivem e têm a capacidade de questionar.
Profissão Mestre: O senhor pode dar um exemplo de modelo de educação crítica nos dias atuais?
Torres: Eu trabalho em uma escola de educação muito prestigiada, a Universidade de Califórnia (Ucla), em Los Angeles. É uma escola de pós-graduação com dois departamentos: um de educação e outro de estudos de formação. Em nosso Departamento de Educação, o modelo teórico que utilizamos se chama educação para a justiça social. Muitas escolas nos Estados Unidos têm avançado em seu pensamento crítico, e isso implica que os sistemas, particularmente dos países desenvolvidos, estão começando a encontrar muitas escolas de educação que não são tão funcionais para o sistema capitalista dos governantes. Por que isso? Em parte porque existem pensadores e intelectuais que são muito críticos e não estão dispostos a aceitar os mecanismos de regulamentação capitalista, buscando também as elites e aqueles que controlam os governos, especialmente os que estão vinculados ao neoliberalismo, deslocar a formação dos professores das escolas de educação para outras alternativas, como está acontecendo agora na Inglaterra, com um governo conservador que quer mudar a formação dos professores para escolas de ensino básico, e não para as universidades. Isso, para mim, é outro testemunho de como as elites e, especialmente, o modelo neoliberal confrontam o pensamento crítico que existe e persevera nas escolas de educação.
Profissão Mestre: O que ainda podemos aprender com os ensinamentos de Paulo Freire?
Torres: Há muita coisa [para aprender]. Vocês, aqui no Brasil, têm um grupo de intelectuais, como Carlos Rodrigues Brandão e Moacir Gadotti, que tem trabalhado muito para responder a essa pergunta. Já a minha resposta é: Freire oferece um encontro entre a cultura popular e a educação popular que potencializa as transformações sociais. Essa é uma grande contribuição de Paulo Freire e é difícil entender quando alguém que pensa em política pública não pensa em duas questões de enorme importância: por um lado, a presença de lideranças populares, eleitas democraticamente pelo povo e capazes de estimular um pensamento crítico; por outro lado, uma parceria entre os movimentos sociais e as lideranças populares, que é o que Paulo Freire defendeu quando foi secretário de Educação de São Paulo (SP). Eu diria que esse vínculo entre cultura popular e educação popular é o marco de origem do trabalho de Paulo Freire, de sua crítica à educação bancária. Logo, a primeira questão é a de que Freire continua valioso, vigente e provocador. O segundo elemento: a epistemologia do conhecimento, que propõe Freire, é uma epistemologia que reconhece o valor do conhecimento daqueles que não têm a cultura dos níveis superiores da sociedade. Assim, a revalorização da cultura e do pensamento dos setores populares é um elemento central, em minha opinião e na de muitos, para a construção de um modelo democrático, multicultural e participativo. Se alguém realmente lê Paulo Freire, irá notar que isso está no coração de sua proposta. Paulo Freire quis modificar radicalmente a formulação do sistema educativo brasileiro, por meio de um modelo de acesso e qualidade de educação que vinculava meninos, meninas e adultos, para que se chegasse ao que hoje se conhece como universidades populares, algo que Freire já abordava nos anos de 1950. Esse modelo epistemológico que se vincula ao reconhecimento da qualidade intelectual do pensamento do povo é um segundo elemento central da contribuição de Paulo Freire. Em terceiro lugar, há que se pensar que Freire queria uma educação para a liberdade. Essa imagem de liberdade é a base central da imagem da democracia. Entretanto, Freire nunca esqueceu a essência da democracia nem a crítica de sua perspectiva, inclusive de esquerda, ao poder da classe dominante. É nesse momento que Freire se torna tão relevante para América Latina e para o mundo inteiro.
Profissão Mestre: E em relação à prática educacional?
Torres: Há aspectos teóricos e metodológicos do modelo de Paulo Freire que são de enorme importância e que podem ser implementados em diversos níveis. Em nível universitário, nos capítulos 3 e 4 de Pedagogia do oprimido, texto de 1968, é abordado um novo modelo teórico, criado na América Latina, chamado de action research ou pesquisa de ação. É um modelo completamente novo que começa nos anos de 1960 e que impactou o mundo inteiro, e que teve em Paulo Freire um de seus principais representantes. Nos Estados Unidos, quando você estuda metodologia, você estuda a metodologia de pesquisa de participação ativa – participatory action research – e Freire já mostrou, em nível universitário, como se usa essa metodologia. Em um nível mais primário, como na escola primária e na secundária [educação básica], Freire propôs um modelo chamado de tema gerador, que é de enorme utilidade metodológica para estudar e vincular a criação de conhecimento com a aplicação e a práxis do conhecimento no mundo contemporâneo. Dito isso, a última observação que faço é a de que, quando falo de diálogo e práxis educativa, essa conexão entre esses fatores é o antídoto para os dois grandes projetos que destroem a educação pública: de um lado, o autoritarismo e, de outro, a tecnocracia. Se você tentar criar um diálogo permanente, aberto, que convida ao intercâmbio, um diálogo que é praticamente uma maneira de transformar as ideias por meio da prática, você tem um antídoto contra o que experimentamos com as ditaduras na América Latina e no mundo inteiro e contra o que experimentamos agora com a ditadura do neoliberalismo tecnocrático. Essa contribuição de Freire é, sem dúvidas, a mais importante.
Profissão Mestre: No Brasil, uma das principais preocupações é com a inclusão, com o intuito de promover oportunidades iguais de educação para todos, mas isso nem sempre acontece. Como alcançar uma educação inclusiva, de qualidade e equidade?
Torres: Esse é um objetivo que não existe somente no Brasil, e sim em muitas partes do mundo – é tema nos Estados Unidos, na Europa e, especificamente, na Ásia. É importante observar que as discussões no Brasil têm um contexto internacional importante. O acesso é o primeiro passo indispensável. A inclusão é uma condição necessária, mas não suficiente. Para ser uma condição suficiente, além do acesso, é preciso ter escolas de qualidade, com professores bem formados, que sejam capazes de manter a ordem na sala de aula e de utilizar as qualidades de conhecimento de seus estudantes para incentivar a construção de um novo conhecimento, e que esse processo continue e seja avaliado de maneira racional e não tecnocrática, de forma a aumentar a criatividade e a amorosidade nas escolas. Coloco esses dois termos – criatividade e amorosidade – para refletir algo que para mim é muito importante. Tenho estudado muito os fenômenos educativos na Ásia e, se olharmos para os resultados das últimas provas do Pisa, veremos que muitos dos melhores estudantes estão na Ásia: Coreia, Japão e China – a qual acabou de entrar e se colocou imediatamente entre os melhores. Claro que alguém poderia argumentar, no caso da China, que são tantos milhões de habitantes que os alunos que fazem esses exames são, por natureza, geniais. Se eu tenho 10, 12, 15 milhões de estudantes universitários na China, 10% desses alunos são infinitamente mais talentosos que a média dos extremos em uma curva de distribuição de Gauss. No entanto, é possível dizer também que, quando se tem um sistema de ensino rigoroso e numeroso, há mais possibilidades [de encontrar alunos geniais] do que em um sistema menos rigoroso ou menos numeroso. Agora, nesse contexto, pesquisei também como se estuda em Taiwan, na Coreia e na China. As famílias com mais recursos mandam os estudantes para as escolas públicas durante a manhã e, durante a tarde, para uma escola que chamam de shadow education, a educação das sombras. A criança está constantemente estudando e, me atrevo a dizer, toda a infância e a adolescência são perdidas para essa luta por um excepcional sistema educacional e para a competição para alcançar as vagas nas melhores universidades.
Profissão Mestre: O que esse tipo de sistema pode afetar?
Torres: Esse processo sistemático afeta duas coisas: a criatividade e a amorosidade. A amorosidade porque os jovens, quando estão na escola secundária, têm pouca capacidade para aproveitar a vida, uma vez que são submetidos a esse regime quase militar de educação. E a questão da criatividade é outro grande tema. Na década de 1970, o Japão se converteu em um dos países mais poderosos devido a sua capacidade enorme de reproduzir a tecnologia que existe em outros lugares. Mas, se você olhar a quantidade de prêmios Nobel no Japão e a comparar com a dos Estados Unidos, você notará a qualidade de uma aprendizagem criativa: é uma quantidade infinitamente menor. Por quê? Porque esse sistema de shadow education força os estudantes japoneses, coreanos, taiwaneses e chineses a repetir, a aprender para os testes de aprendizagem, mas os impede de participar de um modelo de aprendizagem criativa. E por que os Estados Unidos têm o maior número de patentes e invenções per capita do mundo e enorme quantidade de prêmios Nobel? A resposta é muito simples: as universidades norte-americanas capturam as melhores mentes do mundo e, dessa maneira, ou treina os melhores cérebros nas melhores escolas e universidades norte-americanas ou atrai, captura as melhores mentes provenientes de outros lugares. Isso está iniciando um refluxo, em que muitos desses cérebros começam a voltar à China, à Índia etc. Alguém poderia afirmar que, nos próximos 20 ou 30 anos, a distribuição dos prêmios Nobel será um pouco mais igualitária. Mas claramente modelos de aprendizagem que não permitam a alta criatividade e a amorosidade de seus alunos não serão os mais bem-sucedidos no mundo capitalista.
http://www.profissaomestre.com.br/index.php/reportagens/entrevistas/1078-contra-a-educacao-bancaria
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