Jornalista Paul Tough |
Escrito por Tania Pescarini
O jornalista Paul Tough, do New York Times, construiu sua carreira escrevendo sobre educação e políticas públicas de combate à pobreza em escolas de grandes cidades dos Estados Unidos. Seu primeiro livro, Whatever it takes: Geoffrey Canada's quest to change Harlem (sem tradução no Brasil), mostra a intervenção do governo, por meio da educação, para melhorar as perspectivas de vida de jovens crescidos em Harlem, bairro de Nova Iorque atingido pela pobreza e pela violência. Em seu segundo livro, Uma questão de caráter (Ed. Intrinseca), traduzido no Brasil, Paul debruça-se sobre o trabalho do economista James Heckman e a relevância de habilidades não cognitivas para o aprendizado e o sucesso acadêmico de crianças e adolescentes. Em um mundo dominado por avaliações padronizadas e exames de admissão em que uma minoria recebe o selo de aprovação, enquanto milhares de alunos são deixados para trás, Tough propõe uma escola que prepare para a vida e promova habilidades ao alcance de todos. Para o escritor, perseverança, otimismo e autocontrole são qualidades positivas que os jovens podem desenvolver já na adolescência e que trazem consigo o potencial de transformar vidas. A Gestão Educacional conversou com o jornalista americano em sua visita ao Brasil, em março, quando participou do Fórum Internacional de Políticas Públicas Educar para as competências do século 21. Confira a seguir as ideias de Paul Tough a respeito de uma das áreas mais novas e promissoras da educação: o estudo de habilidades não cognitivas.
Gestão Educacional: O que é uma educação de melhor qualidade? O que queremos atingir quando buscamos uma educação melhor?
Paul Tough: Acho que [para uma educação de qualidade] um dos principais objetivos é fazer com que os jovens permaneçam mais tempo na escola, concluam mais níveis educacionais. Outro objetivo é fazer com que crianças e adolescentes adquiram as ferramentas de que necessitam para uma vida de sucesso. E isso significa conquistar um emprego que lhes traga satisfação, que os integre de maneira produtiva à sociedade. E, principalmente, queremos que o jovem torne-se um adulto feliz, com boas relações familiares e integrado à sua comunidade. Esses são os objetivos em longo prazo. O que considero novo na abordagem que escolhi para meu trabalho é a definição de quais são essas ferramentas. A escola sempre tentou dar ao estudante as ferramentas necessárias ao sucesso, mas o que minha pesquisa mostra é que a escola tem uma noção um tanto limitada de quais são essas habilidades: grosso modo, o sistema educacional pensa que só o que importa é dominar a escrita e a matemática. Descobrimos que, para atingir os objetivos da educação, os jovens lançam mão de diversas habilidades, muitas delas não cognitivas.
Gestão Educacional: Quais são essas habilidades não cognitivas?
Tough: Podem ser definidas de várias maneiras, mas incluem traços como perseverança, determinação, autocontrole, conscienciosidade, otimismo. São traços de personalidade.
Gestão Educacional: Por que qualidades como curiosidade e determinação são tão, ou mais importantes, que o conhecimento das disciplinas para o sucesso na escola e na vida?
Tough: Descobrimos a importância das habilidades não cognitivas por meio de pesquisas e experimentos feitos por psicólogos e economistas ao longo dos anos (principalmente nos Estados Unidos). Essas pesquisas identificaram o desenvolvimento de qualidades como autocontrole e conscienciosidade em crianças, para depois acompanhá-las na vida adulta. Descobriu-se o enorme impacto das habilidades não cognitivas na vida das pessoas. Por quê? Devemos lembrar que habilidades cognitivas e não cognitivas estão interligadas, pois certos traços de personalidade ajudam no desenvolvimento de habilidades cognitivas. Têm grande impacto no desempenho do aluno conseguir comportar-se e prestar atenção à aula, terminar a lição de casa, comunicar-se com o professor, dar-se bem com os outros alunos, animar-se com novas ideias etc. Fora da sala de aula, pessoas conscienciosas, por exemplo, têm menos chances de contrair dívidas ou passar por divórcios, além de apresentarem menores índices de criminalidade. Ou seja, comprovamos que controlar os impulsos ajuda tanto crianças como adultos a evitar problemas.
Gestão Educacional: Em sua opinião, sucesso não pode ser medido exclusivamente por êxito financeiro?
Touch: Isso mesmo. Trabalhei basicamente com duas áreas de pesquisa: a psicologia e a economia. Os economistas particularmente tendem a ater-se a dados facilmente mensuráveis, como salários, índice de criminalidade, entre outros. Acho que são aspectos importantes, que podem ser indicativos de satisfação e felicidade. Por outro lado, psicólogos podem ir mais a fundo na análise dos resultados dos testes aplicados (testes que analisam habilidades não cognitivas). Resumindo, os marcadores econômicos são indicativos de sucesso, mas não monopolizam o real significado da palavra. Quando converso com educadores, ouço que eles querem para seus alunos uma vida produtiva e repleta de significado. Esse seria o objetivo mais nobre da educação, tanto para os pais quanto para os professores.
Gestão Educacional: Essas habilidades socioemocionais podem ser desenvolvidas somente no período pré-escolar (como a pesquisa citada em seu livro) ou podem ser desenvolvidas mais tarde, nos jovens, nos ensinos fundamental e médio?
Tough: Com certeza. Há algumas razões do porquê a maioria das pesquisas envolver crianças na fase pré-escolar. Uma delas é a maior disponibilidade de dados. O professor Heckman [James Joseph Heckman, ganhador do prêmio Nobel de Economia] estuda o programa pré-escolar sobre o qual eu escrevo, e muitas pessoas vêm prestando atenção a esse estudo, motivadas pela grande quantidade de dados, muito bem coletados. Nesse caso, as crianças foram acompanhadas durante quarenta anos após concluírem o jardim da infância, o que expande ainda mais as possibilidades de pesquisa. Outra razão é que a idade pré-escolar é uma [idade] em que o estímulo do ambiente exerce enorme influência sobre as crianças, que mudam muito rápido. Assim, esforços extras na educação trazem grandes recompensas, em termos de desenvolvimento dos alunos. Mas isso não significa que mudanças não possam ocorrer em uma idade mais avançada. Na adolescência, nos ensinos médio e fundamental II, os jovens novamente se tornam suscetíveis a um processo que os psicólogos chamam de metacognição, que é refletir sobre seu modo de pensar. É nessa fase que podem mudar seus hábitos e padrões de comportamento de maneira que uma criança de oito anos não pode. As histórias de Kewana, Monisha e Anita [citadas no livro] mostram como essas jovens, com idades entre 16 e 18 anos e vidas bastante difíceis, chegam a um momento em que desejam para si outra vida e decidem trilhar um novo caminho.
Gestão Educacional: Habilidades não cognitivas não são facilmente mensuráveis e, por isso, podem apresentar dificuldades para quem formula políticas públicas na área de educação. Como formular ações que incluam o estímulo ao desenvolvimento dessas habilidades? E como treinar os professores para isso?
Tough: Há maneiras de mensurar algumas dessas habilidades, mas elas exigem certa flexibilidade. A mensagem que passamos aos professores é a de que habilidades socioemocionais não são tão facilmente mensuradas como capacidade de leitura, por exemplo. Uma das razões porque habilidades como interpretação de textos e matemática são atraentes para quem formula políticas públicas é que são facilmente acessadas por testes e mensuráveis em larga escala. Além disso, a partir dos resultados sabe-se exatamente o que fazer: ensinar matemática, ensinar leitura. Isso não se pode dizer das habilidades não cognitivas, as quais podemos nunca conseguir mensurar em larga escala. Índices de abandono, notas e comportamento são alguns dos indicadores que podem estar relacionados a habilidades não cognitivas. Os professores podem, com intuição, compreender tais traços de personalidade. Precisamos parar para pensar se não nos apegamos demais às avaliações padronizadas e prestar atenção a coisas como frequência com que os alunos comparecem às aulas, comportamento, lição de casa. São bons indicativos de que estão desenvolvendo habilidades não cognitivas, além de preconizar seu desempenho futuro, na faculdade e na vida. Tais dados podem mensurar, em alguma medida, habilidades não cognitivas.
Gestão Educacional: Quais atividades o professor pode desenvolver em sala de aula para estimular o desenvolvimento de habilidades não cognitivas?
Tough: No início do livro, falo sobre o programa Tools of the mind, para o jardim da infância, bastante focado no autocontrole. O interessante do programa é que ele usa um tipo de brincadeira inspirada no teatro (o que chamam mature dramatic play), com sessões mais longas. Parte do princípio de que jogos cujo enredo dura mais tempo – e em que há personagens definidos – ajudam uma criança de quatro anos a seguir regras. É como em uma peça de teatro: há um papel para cada ator e cada aluno deve desempenhar uma tarefa no jogo. Outra atividade interessante com a qual me deparei foi o xadrez. Nessas aulas, a professora Elizabeth Spiegel trabalhava a capacidade de os alunos superarem as frustrações e a derrota e de aprenderem com seus erros. O que ela os ensinava era força de vontade e a capacidade de reconhecer os próprios erros.
Gestão Educacional: Como o professor deve agir para melhorar as habilidades socioemocionais dos alunos em sala de aula?
Tough: É diferente para cada fase da vida. O que funciona no maternal pode não dar certo no fundamental II. Mas há algumas regras gerais importantes. Uma é que o professor deve estar ciente das dificuldades que seus alunos venham a enfrentar fora da escola, em suas casas. Entrevistei um número de pesquisadores cujos estudos relacionam o estresse sofrido por crianças e jovens e a dificuldade que eles têm em lidar com situações de confronto, aceitar críticas ou mesmo comportar-se em sala de aula. Quando o professor entende as dificuldades pelas quais passam os alunos, aproxima-se deles e lida melhor com o mau comportamento dos jovens, sem com isso ser indulgente. Algo que considero particularmente importante, para o professor, é saber estimular o aluno a aprender com seus erros. Isso é válido para todas as idades: saber lidar com o fracasso. Esse esforço nem sempre é parte do trabalho do professor, mas estudos sugerem que aceitar a frustração não só rende melhores notas, como ajuda a desenvolver novas habilidades não cognitivas.
Gestão Educacional: E como as habilidades não cognitivas devem ser introduzidas no currículo da escola?
Tough: Acho a abordagem do Tools of the mind, que tenta desenvolver o autocontrole por meio da brincadeira, uma boa ideia. Mas não acho que devamos reservar, por exemplo, uma hora por dia para trabalhar traços como perseverança e força de vontade. Acho que é preciso desenvolver essas habilidades por meio da leitura, do jogo, da matemática etc. Na minha opinião, um bom professor pode ajudar os alunos a desenvolver habilidades não cognitivas de acordo com o currículo tradicional da escola.
Gestão Educacional: Os estudos em educação na área das habilidades não cognitivas e o reconhecimento de sua importância nas escolas podem contribuir para a redução das desigualdades?
Tough: Espero que sim, em mais de uma maneira. Um trabalho forte com o [lado] socioemocional em escolas de bairros desfavorecidos pode melhorar as perspectivas de vida dos alunos de baixa renda. Além disso, há a expectativa de que ajudem a aliviar preconceitos. Aqui (nos Estados Unidos), se pudermos reduzir o enorme lapso que há entre o desempenho acadêmico dos alunos desfavorecidos – negros, latinos e de baixa renda – em relação a outras parcelas da população, diminuiremos a percepção de que os jovens carentes são menos inteligentes que os mais abastados. Há ainda um impacto na autoestima dos alunos. Quanto mais abrirmos nossos olhos para um leque mais variado de talentos e habilidades que se pode aprender ao longo de toda a vida, menor a segregação.
Gestão Educacional: Aqui no Brasil enfrentamos o problema da violência nas escolas. Em muitas comunidades carentes, os professores são obrigados a lidar com um ambiente violento e situações para as quais não sempre se sentem preparados. Em seu livro, você relata uma situação de violência em uma escola do ensino médio. Como trabalhar as habilidades não cognitivas pode ajudar a aliviar as tensões?
Tough: Na escola sobre a qual escrevo, Fenger Academy High School, os adolescentes cresciam em um ambiente extremamente violento (um jovem chegou a ser morto por espancamento nos arredores da escola, em 2009) e em meio à pobreza. Poucos contavam com o apoio de uma família estável. A diretora que assumiu depois do desastre fez um bom trabalho, pacificando os corredores e as salas de aula. Muito disso se deve à presença de seguranças no prédio, mas também houve um esforço de compreensão, por parte dela, das dificuldades enfrentadas pelos alunos. Não se pode esperar que adolescentes criados no caos da exclusão social comportem-se, na escola, como se nada de errado ocorresse em suas vidas. As pesquisas indicam claramente que crianças e jovens reagem de maneira negativa ao estresse e à violência. Se a escola quer que esses alunos prestem atenção às aulas e progridam no aprendizado, terá que oferecer apoio extra, conectar-se a eles. Toda criança precisa de um adulto que lhe dê carinho, apoio e atenção. Quando esse apoio falta em casa, a demanda recai sobre o professor, o tutor ou qualquer outra pessoa capaz de estabelecer uma ligação íntima e pessoal com ela. O poder transformador dessa conexão pode ser enorme.
Gestão Educacional: Uma situação socioeconômica desfavorável pode afetar o desenvolvimento socioemocional da criança e do adolescente?
Tough: Obviamente afeta muito. Pesquisas demonstram que crianças que crescem em lares instáveis, violentos e hostis podem sofrer alterações bioquímicas no cérebro. É um grande desafio, para jovens carentes, crescer bombardeados pelo estresse. Eles tendem a perder o controle diante de qualquer provocação, sentem dificuldade em organizar suas ideias e prestam menos atenção. Todos esses são sintomas de alterações bioquímicas provocadas pelo estresse na infância.
Gestão Educacional: Hoje se fala muito em desenvolver a habilidade de aprender ao longo de toda a vida. O aprendizado contínuo é visto como fator-chave para o sucesso em algumas áreas. Como as habilidades socioemocionais influenciam o aprendizado contínuo?
Tough: Um dos mais importantes aprendizados para o aluno na escola é aprender a aprender. Para isso, empolgar-se com uma nova disciplina ou novo campo de estudos é fundamental. Está tudo interligado. Seagal, a professora de xadrez sobre quem escrevo, relata que aprendeu a jogar ainda bem nova e cedo se tornou autodidata no jogo. Isso é empolgante porque não só a emancipou do professor de xadrez, como mostrou que ela podia aprender qualquer coisa, desde que se dedicasse. Se posso fazer no xadrez, posso na leitura, na matemática. Tem um potencial transformador na vida das crianças.
Gestão Educacional: Como ajudar os alunos a buscar conhecimento?
Tough: Acho que quando as aulas se atêm a um programa em que a matéria é dada segmentada, no velho esquema aula expositiva-lição de casa-provas, os alunos tendem a adotar uma postura mais passiva. Quando o professor pede um trabalho mais aberto, que envolva pesquisa ampla, há possibilidade de ensinar ao jovem o processo de aprendizado, e não somente o produto deste. Isso pode ser feito de várias maneiras e a todo momento. Lembro-me de que, quando estava na escola, os professores que me davam projetos abertos e me guiavam no processo de descoberta foram os que mais me ensinaram nesse sentido.
Gestão Educacional: Como surgiu, para você, a vontade de pesquisar as habilidades não cognitivas na educação?
Tough: Uma questão de caráter é, na verdade, meu segundo livro. Meu primeiro livro, infelizmente não publicado no Brasil, cujo título é Wathever it takes, trabalha muito com a hipótese cognitiva. Entrevisto especialistas em testes, avaliações acadêmicas e desempenho dos alunos em disciplinas do currículo tradicional. Após concluir esse trabalho, comecei a refletir sobre as outras dimensões em que se apresentava o universo da educação. Conversei com pediatras e educadores. Quando comecei a escrever Uma questão de caráter, não sabia que seria um livro sobre habilidades não cognitivas. Comecei indagando que tipo de intervenção ajuda o progresso dos alunos na escola e, quanto mais pesquisava, mais me aproximava das habilidades não cognitivas.
Gestão Educacional: A questão socioemocional na educação é relativamente nova. Como foi recebido o livro?
Tough: Foi bem recebido. Recebi elogios de educadores que trabalham com crianças ricas e também daqueles que ensinam as mais pobres. Pais, professores, burocratas, diversos setores da sociedade demonstram interesse pelo assunto. Ainda há uma frustração em relação às perspectivas práticas; os professores me perguntam o que fazer a respeito [das habilidades não cognitivas]. Os educadores sabem que querem dar a seus alunos mais que uma boa nota nas avaliações unificadas, porque a educação é mais profunda que isso. E o fato de darmos um nome a essa outra faceta do ensino, que são as habilidades não cognitivas, já anima muitos professores.
+PARA LER
Uma questão de caráter
Paul Tough
Editora Intrínseca, 2014
272 páginas
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