Para especialista em educação infantil, experiências lúdicas, incluindo os contos de fada, são a melhor forma de ensinar as crianças
A descrição não é nada absurda. Ela resume um dos projetos de pesquisa da especialista em educação infantil Marilyn Fleer, professora do Departamento de Educação da Universidade Monash, na Austrália. Depois de visitar inúmeras escolas, observar professores em salas de aula e registrar, em muitas horas de vídeo, a reação de alunos, Fleer tornou-se convencida de que a brincadeira e a liberdade criativa são as melhores ferramentas do ensino.
Baseada na teoria de Lev Vygotsky (1896-1934), bielo-russo pioneiro no estudo do desenvolvimento infantil, Fleer garante que brincar está longe de ser um passatempo inconsequente para os pequenos. Quando transforma um pedaço de madeira em um cavalinho, um menino e uma menina estão pensando de forma abstrata, afirma, realizando um exercício parecido com o de usar, mais tarde, um outro pedaço de madeira como régua para medir objetos.
Em um de seus estudos mais recentes, a professora investigou se os contos de fada podem ser uma boa forma de trabalhar conceitos científicos no início da infância, com alunos entre 3 e 4 anos. Ao colocar em prática o projeto em uma escola australiana, ela e sua equipe puderam observar que histórias fantasiosas como a de Cachinhos Dourados são uma poderosa forma de envolver as crianças na busca por conhecimento. “Elas ficam tão ligadas ao conto que se sentem motivadas a encontrarem soluções para os problemas dos personagens. Elas realmente querem ajudar o herói, o que as torna emocionalmente engajadas”, conta.
Ao visitar Brasília recentemente para palestras na Universidade de Brasília (UnB) e no Centro de Ensino Unificado de Brasília (UniCeub), a convite do professor das duas instituições Fernando González Rey, Fleer conversou com o Correio sobre seus estudos, a teoria de Vygotsky, o ensino científico para crianças e a importância da educação infantil.
A senhora baseia seus estudos na teoria de Vygotsky. O que ele ensinou de mais importante sobre a educação de crianças?
Muitas coisas. Mas, em termos de pedagogia para crianças, destacaria seu trabalho sobre o brincar e a definição que ele deu à brincadeira. A literatura tradicional assumia que as crianças brincam de uma forma predeterminada, mas Vygotsky disse que, na brincadeira, crianças e professores criam juntos uma situação imaginária, na qual o significado de objetos e ações podem ser mudados. E isso é muito importante na relação entre brincadeira e aprendizado. Em sua teoria, quando uma criança pega um pedaço de madeira e o transforma em um cavalinho, faz algo parecido com usar um pedaço de madeira como uma régua para medir as coisas. A medida também é algo abstrato, desenvolvido culturalmente, não existe na natureza. Da mesma forma, a brincadeira é algo construído. Por isso, o jeito de brincar é diferente em cada país, porque não é algo natural, biológico.
Foi essa concepção de brincadeira que a levou a investigar se os contos de fada são uma boa forma de ensinar conceitos científicos para crianças?
Sim. Por que escolhi os contos de fada? Eles são uma importante tradição em muitas comunidades, e sua carga dramática faz com que a criança responda emocionalmente à história e se identifique com os personagens. Ao mesmo tempo, eles têm a vantagem de permitir à criança entrar e sair daquela situação. Ela se envolve, mas, se fica com medo, pode se afastar. Outros autores que trabalham com a teoria de Vygotsky já argumentaram que esse gênero é um importante apoio ao desenvolvimento infantil, então considerei interessante investigar como ligá-los ao aprendizado de conceitos científicos. E o que acontece é que as crianças ficam tão ligadas ao conto que se sentem motivadas a encontrarem soluções para os problemas dos personagens. Elas realmente querem ajudar, o que as torna emocionalmente engajadas. E isso é experimentado de forma coletiva.
Isso é interessante, porque Vygotsky dizia justamente que o aprendizado envolve a emoção, não é um processo apenas racional.
Exato. A cognição não funciona isoladamente. Tudo que aprendemos está em um contexto, há sempre uma dimensão social envolvida. Seus sentimentos influenciam seus pensamentos e vice-versa. E nós estamos sempre respondendo emocionalmente ao nosso pensamento e pensando sobre nossos sentimentos. Não é possível separar um do outro, não é assim que funcionamos como seres humanos. Esse é um ponto com o qual concordo totalmente com Vygotsky e que torna seu trabalho tão útil.
Deveríamos, então, considerar a importância da brincadeira também em outras fases do ensino? Hoje, ainda parece mais fácil deixar as crianças aprenderem dessa forma na pré-escola. Mas, quando elas chegam ao 1º ou 2º anos, estão com 6, 7 anos, surge uma necessidade de tornar o ensino algo “sério”.
Há vários indícios de que as crianças têm um aprendizado mais rico quando você muda as condições de ensino, saindo dessa forma mais “séria” e as deixando viver experiências de aprendizado criativas, seja por meio do teatro e da arte, seja por alguma outra forma. Em Vitória (estado australiano), por exemplo, existe uma escola para crianças de até 12 anos que se destaca nesse aspecto. E, quando outros colégios recebem os alunos que saem de lá, os novos professores ficam admirados, pois são estudantes motivados, interessados, curiosos. Eles perguntam: “O que tem na água desta escola? O que é feito lá?”.
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