JOÃO BITTAR/CENTRAL DE MÍDIA DO MEC |
A Escola Municipal Casa Meio Norte fica em uma rua remota de um dos bairros de menor renda e maiores índices de violência de Teresina (PI), cercada de mato, entulho e de casas simples, feitas de tijolo sem acabamento ou pintura.
A despeito do entorno empobrecido, os resultados da Casa Meio Norte têm crescido regularmente nas avaliações oficiais de educação. Em 2017, 100% dos alunos avaliados da 5ª série tinham conhecimentos adequados em matemática e português - um salto, respectivamente, de 51 pontos percentuais e 27 pontos percentuais em relação a 2013, segundo dados da Prova Brasil, do Ministério da Educação.
Os índices são consideravelmente superiores às médias do Piauí e também do Brasil. No país inteiro, pouco mais da metade dos alunos dessa faixa etária têm conhecimentos adequados em português e só 44% os têm em matemática.
A grande transformação por trás dos índices crescentes na Casa Meio Norte começou em 2000, com um projeto de alfabetização e incentivo à leitura implementado por duas diretoras escolares que se viram diante de um desafio: como ensinar crianças em uma conjuntura totalmente adversa?
"A escola fica em uma área de alta vulnerabilidade. Os alunos às vezes chegavam portando armas e facas, havia brigas de gangues, a distorção idade-série (alunos fora da série adequada para sua idade) era altíssima. E a gente pensava: o que vamos fazer com essas crianças?", conta à BBC News Brasil Ruthneia Vieira Lima, diretora pedagógica da escola.
"Ao mesmo tempo, eu via que nossos alunos tinham grandes habilidades motoras, desde pequenos. Não tinha nada de errado com eles. Voltamos às teorias pedagógicas e passamos a estudar as crianças uma a uma para entendê-las. Tentamos olhar o modo como a criança aprendia a ler, mais do que como o professor a ensinava."
Lima, ao lado da também diretora Osana Santos Morais, desenvolveu, sem nenhum novo investimento, uma estratégia própria, que batizaram de Projeto Borboleta, a partir da ideia de transformação do inseto: "Ele passa de rastejante para voador. É como vemos os processos de aprendizado. A leitura te permite voar daqui para qualquer lugar do mundo."
De borboletas a águias
Olhando-os individualmente, as diretoras dividiram os alunos em quatro grupos, a partir da capacidade de leitura - em vez de pela idade - de cada um: desde "borboletas" (os que não leem nada) passando para "andorinhas" (os que são capazes de juntar uma letra a outra, mas sem interpretá-las) daí para os "gansos" (os que conseguem ler um pouco mais, mas sem fluência) indo até as "águias" (os leitores fluentes).
A estratégia combina ensinar às crianças como as palavras são articuladas e o que Lima chama de "coreografia" da escrita - o fato de que a mudança de uma letra pode mudar o sentido da palavra. Mas vai além: a oferta de livros e os momentos de leitura são abundantes, "para a criança aprender com o sentido das palavras e escutar seus usos, para se sentir uma leitora. Também usamos muitas poesias, por causa de sua melodia".
Assim, as crianças passaram a ler uma média de 30 livros por mês, ou um por dia, mas em um contexto "prazeroso, em que o texto tem significado. É entender que o ler pelo prazer de ler faz diferença na vida", conta Osana Morais.
E os professores são encorajados a sair da cadeira e "a ver como está a leitura do lado das crianças, a escutá-las, sentindo o cheirinho delas. A aproximação afetiva é crucial para isso dar certo", diz Lima.
A estratégia também tenta tornar as crianças mais ativas no aprendizado e na autoavaliação. "Elas são incentivadas a avaliar a própria leitura: 'preciso melhorar na leitura da pontuação', por exemplo. A partir disso, fazemos proposições de como ela pode avançar até 'virar águia'. Não temos uma cultura de provas e fazemos apenas as avaliações obrigatórias do MEC", prossegue.
Por fim, Lima diz que foi necessário tirar os professores da zona de conforto.
"Como existe a expectativa de que a criança levará três anos (de ensino fundamental) para aprender a ler e escrever, ninguém se preocupava muito em ser aquela que ia ensiná-la de fato, e o aluno só ia passando de ano", explica a diretora pedagógica.
Com isso, diz Morais, os professores da escola foram transformados em "aprendizes e observadores de alunos em processo de evolução, para compreender a criança como um ser capaz de aprender tudo".
'Poucos leitores'
Ante os resultados na Casa Meio Norte, as diretoras passaram a "franquear" a estratégia para outras escolas e cidades da região, assim como fazem os sistemas de ensino privados. São mais de dez municípios do Piauí replicando o Projeto Borboleta, diz Lima.
Um dos principais exemplos vem de Oeiras, pequena cidade de 37 mil habitantes encravada no meio do Piauí.
A secretária de Educação, Tiana Tapety, queria transformar a cidade em um polo de leitura, mas notou que, "sem (um projeto de) alfabetização, tínhamos poucos leitores", disse ela durante seminário sobre alfabetização realizado pelo Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV no Rio, em 23 de maio.
O Projeto Borboleta começou nas escolas da rede municipal oeirense em 2017 e, aliado a demais esforços para incentivar a leitura e a cultura entre os jovens da cidade, fez com que as escolas locais praticamente zerassem as taxas de abandono escolar e reprovação, segundo Tapety.
"Temos quase 100% de nossas crianças do 1º ao 5º ano lendo", disse a secretária. "Esse resultado, acima de tudo, é uma justiça social. (...) Nossas escolas passaram a ter médias semelhantes, (a notas no Ideb, medição oficial do MEC) entre 6 e 7."
Para Francisca Pereira Maciel, diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da UFMG, o Brasil já tem uma variedade de métodos e estratégias de alfabetização para atender as necessidades das escolas, materiais didáticos adequados e até bibliotecas bem equipadas em boa parte das redes do país.
Mas ainda tem gargalos que dificultam que exemplos como os de Oeiras e da Casa Meio Norte se tornem mais comuns: além de fragilidades na formação universitária de professores plenamente hábeis a alfabetizar, o principal obstáculo é a criação de um compromisso com a alfabetização e de um projeto coletivo.
"E esse não pode ser um compromisso do professor sozinho, mas sim um objetivo compartilhado (em cada rede e em plano nacional)", diz à BBC News Brasil. "O que temos hoje é a descontinuidade, a falta de apoio ao professor e a dificuldade dele em compartilhar tanto suas coisas legais como suas dúvidas."
Embora não tenha estudado o Projeto Borboleta a fundo, Maciel diz que um mérito do projeto é ter conseguido "trabalhar a leitura e a escrita em contexto com a cultura no entorno da escola e criar um coletivo que permitiu a formação de todos os professores (em torno de um objetivo comum)."
Analfabetismo no Brasil
Apesar de avanços no combate ao analfabetismo, o Brasil ainda tem enormes desafios nessas áreas.
Ao 3º ano do ensino fundamental (ou seja, o final ciclo final da alfabetização), apenas 66,2% dos alunos brasileiros tinham aprendizado adequado em escrita e 78,3% em leitura, segundo dados de 2016 (os mais recentes) do Ideb.
Para além das crianças, segundo dados do IBGE, o país passou de 11,4% de jovens ou adultos analfabetos em 2004 para 7% em 2017, mas isso ainda equivale a 11,5 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever.
No Piauí essa taxa era 16,6% em 2017, a segunda mais alta do país, atrás apenas do Maranhão (16,7%), de acordo com o IBGE.
Já o número de analfabetos funcionais - capazes de escrever o próprio nome, mas não de interpretar um texto ou realizar operações matemáticas cotidianas, por exemplo - é muito maior: cerca de 30% da população brasileira.
A alfabetização foi um dos assuntos no centro de polêmicas neste ano no MEC, que em abril lançou a Política Nacional para essa etapa, com a intenção de "fundamentar em evidências científicas suas políticas públicas para a alfabetização", e gerou um debate diante da sinalização de que o método chamado de "fônico" (que associa letras aos fonemas) seria privilegiado em detrimento de outros.
Isso levou a críticas de diversos especialistas, por discordarem ou do método fônico ou da ideia de que uma única metodologia seja estimulada pelo ministério.
Francisca Maciel, do Ceale-UFMG, diz que favorecer um ou outro método "fere a autonomia da escola e não dá garantia nenhuma de aprendizado".
"O que é necessário é um compromisso para que as crianças sejam alfabetizadas com a capacidade de fazer uso social (da leitura e dar escrita), que faça sentido para além das quatro paredes da escola. Caso contrário, vira algo mecanizado. Onde ficam o prazer e o sentido do aprendizado?"
Para Ruthneia Lima, da Casa Meio Norte, as discussões em torno dos métodos acaba tirando o foco da necessidade de cada professor aprender com as dificuldades reais de seus alunos, individualmente.
"É o aluno que empurra o professor a aprender (a ensinar)", argumenta.
Outra estratégia, disse Tiana Tapety, de Oeiras, é a escola puxar para si plenamente a tarefa de alfabetizar as crianças, sem esperar contrapartidas de famílias muitas vezes desestruturadas e pouco escolarizadas.
Ela citou, por exemplo, uma grande quantidade de crianças de Oeiras que são criadas apenas pelas avós.
"Como vamos mandar uma tarefa de casa para um menino cuja avó não sabe ler?", questionou ela no evento da FGV. "Então, temos que valorizar o tempo dela na escola. Se a família não consegue, nós vamos fazer mais pela criança. (...) Se ela não aprendeu, a gente retoma. Nenhum aluno a menos."
Ruthneia Lima conta que, nos 19 anos em que ajuda a comandar a Casa Meio Norte, "perdemos 30 crianças para a maginalidade. Mas também temos meninos que foram para a universidade e se formaram em Enfermagem, Bioquímica, Psicologia".
"Ainda estou pesquisando o motivo, mas vejo que (nossa estratégia) se sobressai principalmente nas escolas de zona rural. Eu acho que é porque alavanca a autoestima dos alunos. Eles ficam empoderados para ler. Meu sonho é que cada criança do Piauí mostre que é uma pessoa capaz de aprender."
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