Em entrevista ao Porvir, gerente geral da agência responsável pelo currículo australiano analisa o texto preliminar da Base Nacional Comum brasileira
Para garantir que o sistema educacional proporcione o desenvolvimento integral de estudantes brasileiros, considerando todas as suas dimensões – intelectual, emocional, cultural, física e social – é necessário que o currículo nacional preveja, de forma clara e objetiva, quais capacidades os alunos devem aprender. Essa é a opinião de Phil Lambert, gerente geral da Acara (Australian Curriculum Assessment and Reporting Authority) – entidade australiana responsável pelo desenvolvimento e implantação do currículo nacional daquele país.
Para Lambert, que teve um papel importante na construção do documento que prevê o que os estudantes australianos devem aprender e estuda outros currículos pelo mundo, o texto preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNC) brasileira, que está disponível para consulta pública na internet até o dia 15 de março, ainda não contempla integralmente essa visão. Em visita ao Brasil na semana passada para reuniões com especialistas e representantes instituições de educação ligados ao Movimento pela Base Nacional Comum, ele avaliou que falta coerência entre o texto introdutório da proposta curricular brasileira e os objetivos de aprendizagem constantes em cada área de conhecimento propostos pelo Ministério da Educação. Embora tenha encontrado no preâmbulo da BNC uma expectativa de aprendizagem contemporânea, que prevê formar jovens capazes, tanto intelectualmente como em termos de capacidades socioemocionais, comportamentos e atitudes, ele não enxergou mais adiante como essas capacidades que levam ao desenvolvimento integral vão se concretizar.
“Nos textos das áreas de conhecimento há muitos objetivos de aprendizagem que apenas levam os alunos a repetir e decorar conteúdos, em vez de fazê-los agir ativamente em relação aos conhecimentos para resolver problemas, desenvolver a criatividade e refletir”, afirmou.
Leia série de reportagens sobre o debate da Base Nacional Comum Curricular:
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A boa notícia é que, segundo a experiência de Lambert, a construção de um currículo pode ser realizada em várias etapas. Na Austrália, que tem um dos currículos mais preocupados com o desenvolvimento integral dos alunos no mundo, o trabalho começou em 2008 e ainda segue em implantação. “Vocês têm um primeiro rascunho. Tenho certeza de que terão um segundo, depois um terceiro… É natural que ocorra um aprimoramento em relação a essa primeira versão”, disse.
O Porvir conversou com Lambert sobre a leitura crítica que a Acara realizou do texto preliminar da Base, entregue ao MEC juntamente com outras avaliações feitas por especialistas nacionais e internacionais convidados pelo Movimento pela Base Nacional Comum. Leia os principais trechos da entrevista:
Porvir – O senhor teve a oportunidade de ler e analisar o texto preliminar da Base Nacional Comum Curricular, elaborado pelo Ministério da Educação. Gostaria de saber qual é a sua avaliação da proposta em debate.
Phil Lambert – É um primeiro rascunho e todos devem levar isso em consideração. As informações contidas na introdução são relevantes, no que diz respeito às expectativas de aprendizagem. Isto é, o texto mostra que espera-se formar jovens integralmente capazes, tanto intelectualmente como em termos de capacidades socioemocionais, comportamento e atitudes. É uma promessa que cria uma expectativa em relação ao que os objetivos de aprendizagem vão trazer. Até agora, eu só tive a chance de revisar os textos das áreas de português, matemática e ciências naturais, e sei que é apenas um rascunho, mas o que posso dizer é que não existe uma grande relação entre o que a introdução diz que vai entregar e o que realmente está lá. A conexão entre a visão dos objetivos gerais do documento e os objetivos de aprendizagem por área de conhecimento não está coerente e clara. Também identificamos alguns problemas de progressão, em como os alunos vão se desenvolver através dos anos a partir da proposta, principalmente no detalhamento das áreas de conhecimento. Além disso, falta objetividade no texto de introdução, que é bastante denso e poderia ser mais claro. Você pode dizer exatamente a mesma coisa, o que está prometido ali, mas ficou escondido em um texto rebuscado. Acredito que deva ser mais objetivo, para ser mais acessível a mais pessoas, incluindo professores. O outro ponto é que a exigência sobre os alunos poderia ser maior. Nos textos das áreas de conhecimento há muitos objetivos de aprendizagem que apenas levam os alunos a repetir e decorar conteúdos, em vez de fazê-los agir ativamente em relação aos conhecimentos para resolver problemas, desenvolver a criatividade e refletir.
No momento, o que é esperado dos estudantes é uma
atitude passiva, mas se o objetivo é tornar o aluno ativo, ele deve ser
muito mais desafiado, tanto intelectualmente como em termos de
capacidades, ações e comportamentos
Porvir – O senhor avalia que é preciso reescrever todos os textos das áreas de conhecimento para que os objetivos de aprendizagem contemplem o desenvolvimento integral dos estudantes?
Lambert - Existem três ações possíveis para aprimorar o currículo que está sendo construído. A primeira é redigir a introdução de forma mais clara, para que fique especificado as capacidades que vocês (brasileiros) buscam desenvolver em suas crianças e jovens na escola. Depois, é preciso olhar para os objetivos de aprendizagem e entender como eles conseguirão desenvolver essas capacidades. Seus autores devem trabalhar a partir dessa visão, assim saberão os tipos de ações e estratégias que devem constar no documento, como inserir o desenvolvimento dessas capacidades de forma integrada às disciplinas. Como eu disse antes, no momento, o que é esperado dos estudantes é uma atitude passiva, mas se o objetivo é tornar o aluno ativo, ele deve ser muito mais desafiado, tanto intelectualmente como em termos de capacidades, ações e comportamentos.
Porvir – Baseado em sua experiência na formulação e implementação do currículo australiano e o que o vem estudando em outros currículos pelo mundo, o senhor acha que o Brasil precisa repensar as capacidades escolhidas para o texto introdutório da Base Nacional Comum Curricular?
Lambert – As capacidades que vocês escolheram são válidas e contemporâneas, similares com aquelas de currículos de outros países. Não há nada de errado no que identificaram como prioridade. Mas o que pode melhorar é como elas devem ser inseridas nos objetivos de aprendizagem das áreas de conhecimento.
Porvir – E como o ensino dessas capacidades pode ser implementado nas escolas?
Lambert – O primeiro passo é realmente ter essas capacidades previstas no currículo, de modo que fique claro o que vocês querem que todas os jovens tenham acesso na escola, em todo o país. O currículo deve ter isso para que o aprendizado ocorra. A segunda etapa é garantir que os professores entendam plenamente os tipos de atividades e práticas que devem ocorrer nas salas de aula – para isso a formação de professores é importante. E por último, é necessário apoiar os professores oferendo recursos pedagógicos, dos mais variados, que os ajudem a colocar o currículo em prática.
O desenvolvimento integral é algo que pode ser
alcançado, já foi realizado por outros países, existem técnicas sobre
como isso pode ser feito, que podem ajudar o Brasil
Porvir – O sistema de educação brasileiro tem muitas falhas e muitos alunos aprendem menos do que esperado. Por isso, algumas pessoas defendem que é mais importante apostar no básico e em ensinar os conteúdos tradicionais de forma mais qualificada. Outras acreditam que é necessário se preocupar em ensinar os conhecimentos cognitivos e, ao mesmo tempo, desenvolver capacidades que levem ao desenvolvimento integral dos estudantes. O senhor acredita que é melhor apostar em uma coisa de cada vez ou é possível fazer tudo isso ao mesmo tempo?
Lambert – Ambos os pontos são importantes. O texto preliminar da BNC não vai levar à evolução que o Brasil espera ter em sua educação. Por isso, os primeiros anos da escola deveriam ser focados em desenvolver os conhecimentos básicos da letramento e matemática, mas aprendizado é mais que isso. A experiência escolar deve contemplar o desenvolvimento de capacidades e comportamentos que os jovens podem incorporar às suas vidas agora e no futuro. O desenvolvimento integral é algo que pode ser alcançado, já foi realizado por outros países, existem técnicas sobre como isso pode ser feito, que podem ajudar o Brasil e o movimento de mobilização que busca incluir no currículo todas essas expectativas de aprendizagem. É importante entender que, à medida que os alunos evoluem na escola, se eles trabalharem todas essas capacidades, o aprendizado se torna mais relevante, as aulas ficam mais engajadoras e os resultados do sistema de educação serão melhores do que os registrados atualmente.
Porvir – Em termos práticos, quais devem ser próximos passos para a construção do currículo?
Lambert – Vocês têm um primeiro rascunho. Tenho certeza de que terão um segundo, depois um terceiro… É natural que ocorra um aprimoramento do currículo em relação a essa primeira versão. É preciso deixar a visão do que se espera que os alunos aprendam mais clara. Com isso em mente, os responsáveis pelas áreas de conhecimento no currículo devem revisar seus textos e inserir propostas que desenvolvam as capacidades escolhidas, sem perder os conteúdos relevantes para cada disciplina, mas garantindo que elas sejam integradas ao aprendizado das disciplinas. Há muito a ser feito, em um período curto de tempo, mas se forem estabelecidas prioridades, como por exemplo escolher áreas de conhecimento para serem realizadas e implementadas antes de outras, ajustar a progressão do aprendizado e elevar o nível de exigência sobre os alunos, isso pode ser alcançado.
Porvir – E como deve ser o trabalho de preparação dos professores para trabalhar essas capacidades?
Lambert – É difícil generalizar. Alguns professores ficarão muito entusiasmados para realizar esse trabalho e estão ansiosos por um currículo com esse olhar. A formação deve acontecer integrada com a implementação do currículo, a ser realizada pelos Estados e municípios. É preciso identificar algumas prioridades e não tentar fazer tudo ao mesmo tempo. Mas procurar as prioridades, garantir uma boa formação nessas áreas e dar apoio a esse trabalho. Material pedagógico também é muito importante. Esses recursos podem vir do setor privado, de ONGs, do governo. Certamente vai ser interessante para empresas e editoras produzirem materiais, uma vez que o currículo nacional cria uma demanda nacional.
http://porvir.org/desenvolvimento-integral-comeca-pelo-curriculo-diz-especialista-australiano/
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