Escrito por Bianca Melo
O Ministério da Educação (MEC), em seu Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, apregoa como objetivo a alfabetização de todas as crianças brasileiras até, no máximo, oito anos. O mesmo plano sugere o incentivo à leitura na sala de aula. Para o professor que se vê diante de crianças em fase de alfabetização, o desafio é como usar a literatura infantil nesse processo, de forma a se aproveitar o potencial do livro, abrir possibilidades para os pequenos alunos e, ao mesmo tempo, sugerir uma boa relação com a literatura desde cedo.
O faz de conta dos livros infantis leva as crianças a se fixarem em personagens e enredos com atenção e interesse. Assim, é muito melhor falar em letras e grafia usando histórias como a da tartaruga que não sabia andar depressa, a da bruxa convidada para a festa da turminha ou a do tatu tocador de flauta. O que se discute é como usar o livro com alunos que estão aprendendo a ler. Livro de literatura como aquele objeto distante que fica lá na biblioteca não é o melhor caminho, segundo as especialistas ouvidas pela reportagem. Ele precisar estar perto tanto do professor quanto do aluno e ser um companheiro de muitas horas.
Angélica Sepúlveda, doutora em Psicologia da Educação e pesquisadora do Laboratório de Educação, descreve um equívoco comum: em muitas salas de aula de alfabetização, as práticas de ensino consistem em trabalhar das unidades menores às maiores – primeiro as letras, depois as sílabas, as palavras e, em último lugar, os textos. “Trata-se de uma lógica adulta sobre os processos de ensino e aprendizagem”, ressalta Angélica, que afirma que, com frequência, essa opção coincide com práticas de ensino nas quais não se assume a aprendizagem da escrita como um desafio conceitual para a criança, o que seria o mais indicado. Em vez disso, alguns professores tomam a escrita como uma questão de repetição e treino de uma série de habilidades. “Isso ocupa a maioria do tempo de trabalho em sala de aula, deixando pouco protagonismo para a leitura de textos, para falar sobre as formas em que ‘se fala quando se escreve’ (linguagem escrita) e para se apropriar dessas formas para a formulação de textos próprios”, considera.
A pesquisadora observa que é preciso considerar a convivência que as crianças já têm com os textos e o universo letrado, em diferentes níveis, antes mesmo de elas começarem a ler. “As crianças costumam saber mais de textos e usos escritos da linguagem que de sílabas, palavras e frases. É possível aproveitar esses conhecimentos infantis quando se trabalha em torno de textos”, pondera Angélica.
De modo geral, o aluno que cria o hábito da leitura se desenvolve melhor na escola, pois se relaciona bem com enunciados escritos, presentes em toda sua vida escolar, e trabalha em seu cérebro a capacidade de fazer conexões e criar imagens alusivas que a literatura possibilita. Mas é importante ter clareza do uso que se faz da literatura na escola, desde a escolha do livro até o momento de introduzir cada um deles, como defendem especialistas, a exemplo da diretora executiva do Laboratório de Educação, Beatriz Cardoso, que coordenou a pesquisa Conversas sobre e a partir dos textos: a incorporação de práticas letradas por professores alfabetizadores. “Em termos de literatura, tem livro bom e livro ruim. A escolha depende do ‘para que’, já que são diferentes estruturas linguísticas, diferentes jogos de palavras”, explica.
Beatriz reforça a importância de o livro de literatura ser usado com intenção pedagógica pelo professor, mas com um cuidado essencial: não transformar a relação com o livro em uma relação extremamente didática e descaracterizá-lo como literatura. “Em geral, os alunos gostam muito dos livros. Na hora de abordá-los com eles, não é legal padronizar um trabalho fechado e pobre em torno do texto, só fazendo perguntas e respostas, por exemplo. Não é essa a ideia. A proposta é que elas possam entrar no universo escrito. Ler as histórias, fazer perguntas, construir imagens, e não ficar só no plano do conteúdo. É trabalho pedagógico, mas deve-se preservar a natureza da literatura na sala de aula”, salienta a diretora.
Aproveitar o momento de alfabetização para apresentar o livro de literatura de outro modo é tarefa que exige, na opinião de Beatriz, muito mais do que sensibilidade. Exige conhecimento, o que, em resumo, é formação. “Quando você tem crianças pequenas em processo formativo, todos os processos estão sendo assimilados, como a prática da escrita, a leitura, a compreensão da linguagem escrita. E o livro é uma excelente plataforma para trabalhar esses diferentes aspectos e permite mesmo trabalhar tudo junto. Mas requer do professor conhecimento do mundo da linguagem, das potencialidades dos textos, do desenvolvimento das crianças em cada fase”, afirma.
Formação docente
Com foco na necessidade de investir em formação de professores, Beatriz Cardoso coordenou a criação do projeto Trilhas quando era diretora da Comunidade Educativa Cedac. Trata-se de um caminho para orientar os professores na tarefa, pensado justamente para as crianças em fase de alfabetização, com o objetivo de inserir as crianças do 1º ano do ensino fundamental em um universo letrado. As escolas recebem cadernos de orientação ao professor, cartelas com sugestões de atividades, jogos educativos e uma caixa com livros infantis.
Hoje o projeto, desenvolvido com apoio do Instituto Natura, está alinhado com o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação e compartilha os mesmos objetivos do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). O material já foi distribuído para mais de 3 mil cidades e há também a possibilidade de acessá-lo na internet. “No Brasil, temos uma diversidade grande em relação à formação de professores. Algumas cidades não têm nem livraria, por exemplo, e a internet nem sempre é um bom caminho quando não se tem um crivo para a busca. Então a realidade vai impactar muito. Atualmente, fica muito relegado ao próprio professor, mas, muitas vezes, não é que ele não quer, mas sim não tem acesso aos materiais e à formação”, explica Beatriz.
Para boa inserção da literatura na alfabetização
Leia em voz alta para as crianças
Ação fundamental para crianças pequenas. Esse ato inclui as crianças e faz com que elas participem de atividade letrada antes mesmo de conseguirem ler.
Aproveite muito o potencial do livro
Diante de um livro infantil, o professor deve criar com seus alunos muitas oportunidades para atribuir significados aos textos: visualizar os textos, reparar em suas características gráficas e de formato, ouvi-los lidos em voz alta, falar sobre eles, parafraseá-los, resumi-los, comentá-los, contá-los e recontá-los.
Não coloque o texto em último lugar
Não é aconselhável usar o método em que se estuda das unidades menores às maiores: primeiro as letras, depois as sílabas, as palavras e, em último lugar, os textos. As crianças nessa fase já têm condições de considerar o texto como estrutura.
Crie formas de aproximar o livro do aluno
Vai depender da estrutura, do professor e das condições, mas uma ideia adotada por algumas escolas é criar uma biblioteca dentro da sala de aula.
Fuja dos exercícios pobres e secos só com pergunta e resposta pronta
Quando se tem em mãos um livro de literatura infantil e crianças aprendendo a ler, é aconselhável ampliar o campo de apreensão daquela obra com brincadeiras, jogos, conexões, exercícios e sentimentos provocados pelo contato com a história.
Use jogos educativos
Achar uma palavra dentro da outra, mapear as repetições, descobrir a sonoridade do que está escrito, relacionar figuras e letras, entre muitas outras atividades, podem dar origem a jogos simples, mas que ativam na criança o desejo de aprender brincando e estimulam a participação e a entrada delas no universo do livro. Os alunos juntam palavras e as relacionam aos demais elementos do livro até conseguirem lê-lo naturalmente.
Descubra a literatura primeiro
As crianças sempre aprendem a ler por meio de outras mãos. O professor que não mostra entusiasmo com a leitura, não se envolve com a literatura e o clima que esta pode criar terá dificuldade para estimular as crianças.
Busque boa informação
Professores interessados em melhorar a formação e aproveitar melhor o potencial dos livros e dos alunos podem baixar gratuitamente cadernos e guias do Portal Trilhas na internet (www.portaltrilhas.org.br), espaço também para trocar informações com outros usuários e de formação a distância para uso do material.
Fontes: Beatriz Cardoso, Angélica Sepúlveda e Projeto Trilhas
Dicas de livros
Confira 18 livros indicados pelo projeto Trilhas para uso na fase de alfabetização
1. Bruxa, bruxa, venha à minha festa, de Arden Durce (Brinque Book);
2. O rei bigodeira, de Audrey e Don Wood (Ática);
3. Quem quer brincar de pique-esconde?, de Isabella e Angiolina (FTD);
4. A casa sonolenta, de Audrey Wood (Ática);
5. O grande rabanete, deTatiana Belinky (Moderna);
6. Uma girafa e tanto, de Shel Silverstein (Cosac Naify);
7. O lobo e os sete cabritinhos, adaptação de Xosé Ballesteros (Callis);
8. O gato de botas; Branca de neve; O príncipe sapo. In: Volta ao mundo em 52 histórias, adaptação de Fernanda Lopes de Almeida (Ática);
9. Cabritos, cabritões, adaptação de Olalla González (Callis);
10. O bicho folharal, de Ângela Lago (Rocco);
11. A flauta do tatu, de Ângela Lago (Rocco);
12. Chapeuzinho vermelho. In: Contos de Perrault, tradução de Fernanda Lopes de Almeida (Ática);
13. A arca de Noé, de Vinícius de Morais (Companhia das Letrinhas);
14. Boi da cara preta, de Sérgio Caparelli (L&PM);
15. Pêssego, pera, ameixa no pomar, de Janet Ahlberg (Moderna);
16. Fiz voar o meu chapéu, deAna Maria Machado (Formato);
17. Salada, saladinha, de Maria José Nóbrega (Moderna);
18. Quem canta seus males espanta 2, coordenação de Theodora M.M. de Almeida (Caramelo).
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