Lino de Macedo: Nós ainda raciocinamos de forma disciplinar, sobretudo do Ensino Fundamental II para frente. E mesmo no Fundamental I. É um professor especialista, que trabalha temas diferenciadamente.
O desafio da educação integral é adotarmos, dentro do possível, uma perspectiva interdisciplinar, mesmo dentro da sala de aula. Por exemplo, o pensamento que toma decisões, que argumenta, que calcula os riscos, não é privilégio da Matemática. Comportar-se na sala de aula de modo adequado e frutífero – frutífero é aquilo que faz bem e adequado é aquilo que é conveniente –também não é privilégio de nenhuma disciplina. Conversar é bom, mas dependendo da hora é inconveniente. Portanto, a ação do professor como um gestor é interdisciplinar, vale para todos.
A pergunta é: como construímos uma perspectiva multidisciplinar para trabalharmos
em equipe? Isso inclui o servente que limpa os banheiros, porque ele tem a oportunidade de observar condutas que os professores não têm.
em equipe? Isso inclui o servente que limpa os banheiros, porque ele tem a oportunidade de observar condutas que os professores não têm.
A estrutura disciplinar dificulta algo que, para ser integral, precisa ser interdisciplinar e multidisciplinar. Existem escolas que estão conseguindo isso e essas experiências têm o valor da transformação. Existem gestores que conseguem juntar os professores nas suas diferentes disciplinas, em favor de um projeto comum. Essa é a saída, porque senão o
professor vai continuar atuando em sala de aula, em uma estrutura inadequada para o raciocínio integral.
professor vai continuar atuando em sala de aula, em uma estrutura inadequada para o raciocínio integral.
Qual o papel de cada agente – a família, a escola, a comunidade – na construção da educação integral? Qual é o aporte diferencial das Ongs, inclusive na perspectiva da diferenciação?
Lino de Macedo: É muito importante diferenciarmos as instituições família, escola, Ong, polícia, religião, enfim, as instituições que cuidam das crianças. A mesma criança que para a família é um filho, para a escola é um aluno, e para a Ong pode ser um consumidor de mídia. Mas é a mesma criança. Como não desagregar? Porque temos um raciocínio institucional e profissional.
Quando falamos em educação, mesmo em educação integral, pensamos nos educadores, nas agências educacionais, portanto, nos
adultos responsáveis pela transmissão de informações. É claro que os educadores fazem tudo para os educandos, mas em uma visão de
educação integral, temos que considerar a perspectiva dos educandos.
adultos responsáveis pela transmissão de informações. É claro que os educadores fazem tudo para os educandos, mas em uma visão de
educação integral, temos que considerar a perspectiva dos educandos.
A questão da diferenciação opera em vários níveis de abstração. Uma coisa é o aspecto político, jurídico, as leis que regulam os sistemas educacionais, etc. Isso faz parte de um jogo muito complexo. Mas temos que saber que também somos jogadores, dentro dos limites da instituição e da comunidade.
Daí, quem trabalha com educação integral tem que enfrentar a problemática da família, nos termos em que ela se desenha hoje. Isto é, inserida na comunidade e em uma cultura, no seu sentido amplo. É mais trabalhoso e, por isso mesmo, é integral.
Proliferaram uma série de iniciativas do poder público que se autointitulam educação integral. Há um lado positivo, que é a inovação, a possibilidade de alcançar algumas dessas dimensões, mas há também aspectos que reduzem o conceito. Qual o papel do poder público?
Lino de Macedo: Educação integral é também fazer uma Lei de Diretrizes e Bases, regulamentos, Planos Nacionais de Educação, impondo deveres ao Estado, criado toda uma jurisprudência. Mas não é só isso. Educação integral é um novo jeito de pensar o lugar de todas as crianças no mundo de hoje.
E quem diz educação integral, diz diversidade, diferenciação. Todos têm o direito a aprender a ler e a escrever, mas cada um tem seu tempo, suas habilidades e suas capacidades. Uma criança com Síndrome de Down, por exemplo, tem direito, como qualquer outra criança, a ir ao máximo das suas possibilidades. Mas existe diferença. Confundimos diferença com desigualdade. A diferença é bem-vinda e precisa ser reconhecida, mas a desigualdade é injustiça, tem que ser combatida.
Cursar o ensino superior é uma aspiração cultural. Mas a maior parte das profissões não precisa de faculdade. Posso ser uma pessoa feliz, sendo cabeleireiro, cozinheiro, pedreiro. Por que não? Isso é uma realidade agora, inclusive em outros países. Isso é ser integral: todo mundo está na roda, mas cada um do seu jeito. Ainda temos muito o espírito da homogeneidade, da igualdade. Temos a ilusão de que todos podem e querem as mesmas coisas. Não podem e nem querem.
Nós, da escola pública, temos uma dívida com as Ongs, porque elas atuam em um espaço, que é o ponto fraco da escola pública: da formação de professores. Ainda que tenha melhorado muito, as Ongs desenvolveram ferramentas, metodologia, criaram condições. Uma coisa o professor lá com o seu dinheirinho fazer a autoformação, outra coisa é o trabalho mais sistematizado, com intencionalidade, desenvolvido pelas ONGs.
Os professores precisam e querem cada vez mais formação. E muitas prefeituras de cidades pequenas não têm condições de formar uma equipe técnica que dê esse suporte de formação aos professores e aos gestores.
Como trabalhar uma equipe que não tenha formação na área escolar para atuar na educação integral? Como aliar a integralidade na educação com uma escola deficitária, as Ongs despreparadas e a sociedade que não valoriza a educação e a cultura e, ao mesmo tempo, a universidade distante desse debate?
Lino de Macedo: Infelizmente tudo isso é verdade. A integração é um direito das crianças, porque elas têm direito de fazer parte do mundo. Elas não pediram para nascer, fomos nós que as inventamos, nós que decidimos tê-las. Elas têm direito de se inserirem nesta sociedade, que é cada vez mais integrada e precisa cada vez mais de integralidade. Então, que isso seja pelo menos um sonho, um desejo, porque os problemas são reais.
A universidade, muitas vezes, faz a crítica, mas é uma crítica teórica, não contributiva. Os professores têm razão quando nos devolvem a pergunta e pedem uma alternativa. Eles até reconhecem que a educação poderia ser melhor, mas se a universidade não der alternativa, a crítica fica injusta. Ela só é válida para o meio acadêmico.
A integralidade é um norte, é uma aspiração, não é o que a gente alcança, é algo que a gente busca. Por isso a integralidade é realizada em projetos particulares, mas o propósito é geral. O propósito é uma forma de ver a vida. A sustentabilidade, por exemplo, é educação integral. Integração é convivência, é respeito, é preservação da vida. Se não tivermos abertura para esses temas, vamos ter o discurso da integração, mas uma prática desintegradora.
As pesquisas apontam para alguma redução da pobreza e, no médio prazo, certo crescimento econômico. Que sociedade sai desse processo? Aumentar o poder aquisitivo das pessoas não significa necessariamente criar cidadãos e cidadãs plenos. Dinheiro no bolso não significa necessariamente valores, padrões de convivência. Afinal, que país queremos ser? O nosso modelo de desenvolvimento gera padronização e homogeneidade, integrando, mas sem assimilar as diferenças. Mas integrar não significa diluir a diferença e, sim, fortalecê-la. Em um país como o Brasil, que tem uma imensa diversidade cultural, como fazer que a escola assuma as diferenças como um valor e não como um problema?
Lino de Macedo: Integração é exatamente a construção de vínculos. A palavra coser existe com ’s’ e com ’z’. Coser com ‘s’ é tecer, costurar. Com um novelo de lã, é possível transformar os fios em uma blusa. Cozer com ’z’ é cozinhar. Neste caso, também se transforma algo em outra coisa. Por isso, a integração transforma o vínculo das pessoas com os outros, das pessoas consigo mesmas.
A educação integral é a grande aposta do século 21. Quando esse tema vem à tona, eu me reporto a um autor indiano que ganhou o Prêmio Nobel de Economia de 1998, chamado Amartya Sen. No seu livro, Desenvolvimento como Liberdade, a ideia central é que a distribuição de renda é necessária, mas se não houver a transformação educacional das pessoas, é insuficiente.
Houve um tempo não muito distante em que as coisas da escola só interessavam a algumas pessoas. Hoje, em uma sociedade tecnológica, todo mundo é atravessado pelos temas da escola, pelo conhecimento cientifico, tecnológico. Então, uma escola que vincule todas as pessoas em uma ideia de relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo, é a aposta do século 21.
Por que a escola ficou tão importante? Infelizmente não é pelo nosso trabalho, às vezes muito bem feito. É que os economistas e os políticos descobriram que investir em educação traz vantagens muito maiores do que todas as outras coisas. Uma descoberta tardia!
Nós dependemos dos políticos e, sobretudo, da concepção que eles têm de escola, de educação, de cultura. Dependemos porque, na verdade, eles representam os nossos interesses. A visão deles é necessária, mas não substitui a nossa ação, que é uma ação técnica, se é que se pode usar esse termo.
De qualquer forma, essa ação está no cotidiano do professor, do diretor, está no cotidiano da sala de aula, na relação com a família, com a comunidade, com a vizinhança. É o dia a dia inteiro e que inteira, que complementa, que forma. E que vai, pouco a pouco, transformando as crianças em cidadãos de uma cultura do século 21.
A nossa parte é fundamental, aquilo que a gente faz no cotidiano da escola. É isso que tem valor, que transforma algo em um todo. Por isso, as Ongs não podem se abater se não estão tendo o reconhecimento que lhes é devido.
Hoje, nós pais e mães ficamos menos tempo com nossos filhos do que os membros da comunidade, seja na escola, seja nesses espaços culturais. Às vezes, os nossos filhos estão mais com essas pessoas e, por isso, dependemos dessas instituições.
Como fortalecer a conexão entre as riquíssimas experiências que o Brasil possui – as Ongs que trabalham com educação, com cultura, que também são pontos de cultura –, fortalecendo e propondo, inclusive, agendas públicas? Para fortalecer, é preciso algum grau de legitimação nas políticas públicas. Para nosso país, que está se transformando, que incorporará milhões de pessoas, não será suficiente a soma aritmética do que cada um faz, porque a demanda é imensa.
Lino de Macedo: Entendo a questão de rede como sistema complexo. Na verdade, a educação integral significa uma educação que funciona na sua complexidade. O que é um sistema complexo?
O sistema simples ou simplificado é aquele em que se pode trabalhar independente de outras variáveis. Achar que as crianças não aprendem porque são burras é um jeito simplificado de ver o problema da aprendizagem, porque reduz uma questão complexa a uma única dimensão. A mesma coisa é falar que os professores são desqualificados.
O sistema complexo é pensar as coisas em uma rede interligada, na qual tudo tem muita importância. Complexidade é ver as coisas de maneira interdisciplinar, multidisciplinar. Isso exige uma perspectiva de recorte. Recorte não significa simplificação.
É possível, por exemplo, escolher algumas experiências que ilustram transformação, em uma visão de educação integral. Esses recortes permitem iluminar certos aspectos do real. Isso tem a ver com a ideia do fractal. Isto é, pega-se um pedaço, mas naquele pedaço, está o todo. Trabalhamos o pedaço na sua perspectiva de totalidade, de rede.
Quem trabalha com educação integral tem que trabalhar com a ideia de rede, senão deixa de ser integral, porque as coisas estão interligadas. Não quer dizer que se confundam. Se, por um lado, é importante uma cumplicidade entre escola e família, por outro, em casa esse menino é filho e na escola ele é aluno. Não se confundem.
Então, trabalhar em rede é próprio da educação integral. E precisamos aprender a trabalhar em rede. Isso significa não ser cego, surdo e mudo para certas coisas que não são próprias da escola, mas aparecem na escola.
Uma criança, por exemplo, não dormiu bem à noite porque o pai bêbado ameaçou todo mundo, não deixou ninguém dormir direito. Naquele dia, ela vai estar desatenta, ou vai estar irritada, briguenta ou triste. Isso afeta o trabalho do educador. Então, é preciso ver a situação na sua complexidade e operar o trabalho em rede.
Mas precisamos aprender, porque a nossa tendência é de atuar de forma isolada ou ignorar as outras dimensões. Ver as coisas na sua complexidade é vê-las com a luz. É sair da indiferenciação, é diferenciar. É um trabalho longo e difícil, mas vale a pena.
Educação integral: experiências que transformam - subsídios para reflexão
Tendo como referência o processo de formação desenvolvido pelo Prêmio Itaú-Unicef em 2012, a publicação sistematiza as reflexões realizadas por especialistas em temas ligados à educação integral durante os debates ocorridos no período. Proteção social, educação e novos saberes, juventude, garantia de direitos de crianças e adolescentes e esporte são alguns dos assuntos. Baixe a publicação.
Tendo como referência o processo de formação desenvolvido pelo Prêmio Itaú-Unicef em 2012, a publicação sistematiza as reflexões realizadas por especialistas em temas ligados à educação integral durante os debates ocorridos no período. Proteção social, educação e novos saberes, juventude, garantia de direitos de crianças e adolescentes e esporte são alguns dos assuntos. Baixe a publicação.
http://www.educacaoeparticipacao.org.br/todas-entrevistas/112-premio-itau-unicef/entrevistas-premio-itau-unicef/690-educacao-integral-uma-proposta-para-o-nosso-tempo
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